Salvatore D' Onofrio
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Dicionário de Cultura Básica
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Literatura Ocidental
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Pesquisando
 
Curso: História da Cultura
 
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Filosofia

Tópicos da palestra do acadêmico Salvatore D’ Onofrio: Rio Preto Automóvel Clube, dia 19 de agosto de 2010, às 20,00 horas.

Mito e realidade

(vivência de mitos greco-romanos na cultura ocidental)

 

I - Definição do mito

“O mito é o nada, que é tudo” (Fernando Pessoa)

O mito como história fantástica: autoria, tempo e espaço, finalidade.

 

                        Nada =  no mundo da realidade, da verdade histórica, da ciência

O mito é:         Tudo =  no mundo da imaginação e da utopia (religião e arte)

 

 II - Mito de Eros (Amor): a força da atração universal

Eros como divindade cosmogõnica, “pré-história” da mitologia grega, passagem do Caos para o cosmo, da eternidade para o Tempo. Conforme a religião órfica, teria existido um Ovo inicial que deu origem ao Céu (Urano) e à Terra (Gaia). A ciência moderna se aproxima desse mito: núcleo do Big Bang = explosão ou Big Crush = implosão: movimento de dentro para fora, expansão ocupando parte dos ¾ de matéria/energia “escura”, o vácuo # vazio. Universo que morde o próprio rabo, sem início e sem fim. A física quântica, relativizando as categorias tempo/espaço, tenta medir a energia do elétron, partícula subatômica, e das esferas macrocósmicas. O mito de Eros tenta explicar a força cósmica da atração universal pela conjunção original do elemento masculino com o feminino (Andrógino).

 

III - Orfismo, Animismo, Budismo, Platonismo, Espiritismo.

            Orfeu, filho de Apolo e da musa Calíope, é o deus da música, do canto e da poesia. Foi buscar a falecida esposa Eurídice no Inferno, mas a perdeu outra vez por não resistir à tentação de olhar sua beleza. Seus adoradores fundaram a religião órfica (animismo) que acreditava na imortalidade da alma e na sua transmigração através de várias encarnações até se purificar e conseguir sua libertação do corpo, considerado o sepulcro da alma. Após o ciclo de purificação, ela retornaria a sua pátria de origem, o céu estrelado. Fortuna do mito: Orfeu Negro, filme de Marcel Camus; Orfeu da Conceição, peça de Vinicius de Moraes.

Fortuna do dogma: a crença na existência de almas sem corpo é bem antiga. Os espíritos dos heróis povoavam a imaginação dos habitantes de continentes destruídos por cataclismos (Mu, Atlântida, Lemúria), cujos restos se encontram em ilhas do Pacífico (Páscoa, Carolinas, Hawai) e em regiões da antiga Birmânia (atual Mianmar), banhada pelo Oceano Índico no Sudeste Asiático, cujas civilizações destruídas remontariam há 15 mil anos. Referência bibliografia: Mu, O ContinenteDesaparecido, de James Churchward. Os conceitos sansara, karma e nirvana de religiões orientais (Hinduísmo e Budismo); teoria das Idéias de Platão; doutrina da reencarnação: O livro dos espíritos (1857), de Allan Kardec e os fenômenos parapsicológicos (no Brasil: Chico Xavier e Bezerra de Menezes).

 

IVJúpiter (Zeus): o complexo do autoritarismo

            Filho de Saturno (Cronos=Tempo), Júpiter é considerado pelo poeta Homero “o pai dos deuses e dos homens”. Ele personifica o todo-poderoso, que se vale da força para subjugar seres divinos e humanos (Anfitrião, peça de Plauto: “Um deus dormiu lá em casa”). A psicologia denomina “complexo de Júpiter” a doença do machismo e autoritarismo, de que sofrem governantes absolutistas, profetas, pais e professores dominadores. É a “razão do mais forte” que provoca a violência nas relações humanas: bullyng em escolas, boates, casernas, ambientes subjugados por mafiosos ou narcotraficantes. O arquétipo do autoritarismo se encontra expresso poeticamente na famosa fábula “O lobo e o cordeiro”, do escritor latino Fedro.

 

V – Apolo e Dioniso: dualismo cósmico

            Apolo (libertador), Febo (brilhante), Hélios (multicor), Sol (único), filho de Júpiter e da divina Latona, perseguida pela ciumenta Juno, é o deus da luz, do calor, da beleza, da ordem. Dioniso (Baco), ditirambo, “aquele que nasceu duas vezes”, de Júpiter e da princesa tebana Sêmele, é o deus do vinho, do carnaval, da desordem, da força do instinto. F. Nietzsche utiliza a oposição apolíneo/dionisíaco para distinguir o espírito conservador do revolucionário; Freud fala de id e superego; Umberto Eco, de autores apocalípticos e integrados; Bakthine, de literatura idealizante e carnavalizada.

 

VI – Mito de Édipo: condenação da endogamia

            Não tenha medo da cama de tua mãe:

            quantas vezes em sonho um homem dorme com a mãe!

Fala de Jocasta a Édipo, na peça Édipo Rei, de Sófocles, que deu a Freud o insight para a formulação da teoria da sexualidade, colocando em evidência a força do inconsciente e da libido. Édipo, filho de Laio, rei de Tebas, conforme o oráculo de Delfos, estava condenado a matar o pai e casar com sua mãe, castigo por seu pai ter seduzido e abandonado o jovem Crisipo, filho do rei da Frigia, causando o suicídio do amigo: condenação do homossexualismo, da endogamia (incesto) e da libido. Freud converte o mito em complexo (id, ego e superego). Os dois versos finais desta tragédia de Sófocles apresentam o tema da catarse =  purificação (o sofrimento como condição da felicidade):

            “Enquanto alguém deixar esta vida sem conhecer a dor,

                                   não pode dizer que foi feliz”.

 


 

Somos energia

            Com o título “Somos energia”, publicado na revista “Bem estar” do Diário da Região (6//11), a psicoterapeuta Marcelle Vecchi estimula os leitores a rever antigos conceitos sobre nossa realidade existencial, à luz dos avanços da ciência. A teoria da Relatividade Geral, junto com outros conceitos da Física Quântica, apresenta uma nova visão do mundo, bem diferente da concepção bíblica do universo criado em sete dias ou da simples atração terrestre, concebida pelo renascentista inglês Isaac Newton.  .

A genialidade de Einstein veio para demonstrar cientificamente que não há vazio no Universo, mas apenas o vácuo, algo que existe, mas não se vê: a energia ou matéria escura. E isto porque nada conseguiria estar solto no cosmos. Todos os elementos da natureza, terrestres ou celestes, materiais ou espirituais, que conhecemos ou possíveis de existir, estão intrinsecamente imersos em ondas gravitacionais, que formam campos eletromagnéticos, que se atraem e se chocam, rodando continua e vertiginosamente, produzindo energia.  

Equações matemáticas descrevem como o espaço se curva em torno de uma estrela, a luz não viaja em linha reta, o tempo passa mais depressa no alto e mais devagar em baixo (um rapaz que vive à beira-mar é levemente mais jovem do irmão gêmeo crescido nas montanhas). Simplesmente, não temos a percepção de que andamos de cabeça para baixo, com os pés presos à terra ou à água pelo magnetismo universal.e de que  o espaço entre mim e o amigo com quem estou conversando é preenchido por ondas gravitacionais.

            O conhecimento científico da modernidade deveria nos levar à percepção de que todos os seres do Universo estão conectados numa imensa rede de energia, não existindo separação entre espiritualidade e materialidade, pois uma não tem vida sem a outra. Não há nascimento ou morte, mas apenas transformação. A criação não deixe de ser um mito, cujo desmoronamento começou com a publicação de “A origem das espécies” (1859), a obra-prima de Darwin, o pai do evolucionismo.

O que distingue uma personalidade de outra é a carga de energia que conseguimos armazenar e transmitir pela interação entre seres humanos e elementos da natureza, de uma forma automática, inconsciente. A articulista fala dos que agem como “vampiros”, gente autoritária e controladora que suga a energia vital de suas “vítimas”.  Caberia a uma sociedade civilizada lutar contra as energias negativas da prepotência, da ignorância e do fanatismo, promovendo a irradiação da força da razão, da justiça e do amor entre todos os seres.


Artigo publicado no Diário da Região de 13/7:

Nosso Universo misterioso

            Acabei de ler um livro, pequeno no tamanho mas imenso no sentido, que deveria ser indicado em colégios e faculdades para professores e alunos de todo o país, conforme minha modesta opinião. Trata-se da obra “Sete lições de física”, do cientista italiano Carlo Rovelli, que nos facilita adentrar os mistérios do Universo, descrevendo a estrutura do espaço e do tempo, que envolve o infinitamente grande (macrocosmo) e o imensamente pequeno (microcosmo). 

Numa linguagem clara, exemplificando com fatos de nossa experiência cotidiana, o autor explica a teoria geral da relatividade de Albert Einstein, a mecânica quântica (do latim “quantum”, quantidades subatômicas), formulada por Max Planck e outros cientistas da primeira metade do séc. XX, ondas gravitacionais, buracos negros e demais achados da física moderna.

            A teoria da Relatividade Geral, junto com a Física Quântica, apresenta uma nova visão do mundo, bem diferente, não só da concepção bíblica do universo criado em sete dias, sendo a Terra o centro do cosmo, o sol girando ao seu redor, mas também da Lei da Gravitação Universal, proposta por Isaac Newton, no contexto do heliocentrismo renascentista. O cientista inglês não conseguira explicar como uma força, que ele chamou de gravidade, pudesse atrair corpos, uns em direção a outros, sem que houvesse nada no meio, no vazio. Filósofos antigos já diziam “nihil ex nihilo” (nada vem do nada) e se tornara famosa a máxima do químico francês Lavoisier: “nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma”.

Chegou, então, a genialidade de Einstein para demonstrar cientificamente que não há vazio, mas apenas o vácuo, algo que existe mas não se vê, pois nada pode estar solto. Todos os elementos da natureza, terrestres e celestes, materiais e espirituais, do universo que conhecemos e de outros possíveis, estão intrinsecamente imersos em ondas gravitacionais, que formam campos eletromagnéticos que se atraem e se chocam, rodando continua e vertiginosamente, produzindo energia.             Equações matemáticas descrevem como o espaço se curva em torno de uma estrela, a luz deixa de viajar em linha reta, o tempo passa mais depressa no alto e mais devagar embaixo, como prova a constatação do gêmeo crescido à beira-mar ser um pouco mais jovem do irmão que viveu nas montanhas.

            O ser humano, que se der ao trabalho de pensar, começa a perceber que anda de cabeça para baixo, preso pelos pés à terra ou  à água de um minúsculo planeta do sistema solar, feito uma bolinha de  gude, rodando a uma incrível velocidade ao redor de si próprio e do seu astro conectado a uma dos bilhões de galáxias. A descoberta da circularidade dos elementos da natureza nos leva à perda da antiga concepção da existência do alto e do baixo, de um mundo “sobre” natural ou transcendente. Como afirma Rovelli, “Somos feitos dos mesmos átomos e dos mesmos sinais de luz trocados entre os pinheiros nas montanhas e as estrelas nas galáxias” (pág. 74). Originariamente, somos poeiras de estrelas e, como elas, morremos tanto individual quanto coletivamente. Ou, melhor, penso eu, não morreremos, mas nos transformaremos em outra coisa. Tudo está imerso na eternidade, sem começo e sem fim!

            O que nos consola é que nossa consciência do mundo continua a crescer, apesar das perplexidades face ao imenso mistério do Universo. Nosso espírito de curiosidade nos leva a querer aprender sempre mais. A moderna Neurociência tem contribuído muito para a compreensão da estrutura e do funcionamento do nosso cérebro, composto de centenas de bilhões de neurônios, tantos quantas são as estrelas de uma galáxia, também eles submetido aos padrões da natureza em suas inúmeras combinações.   Bioquímica, psicologia, mapeamentos cerebrais vêm elucidando idéias, sentimentos, paixões, comportamentos éticos, antes apenas intuitos por filósofos ou poetas. Enquanto o saber artístico ou religioso tem por base a invenção de narrativas fantásticas para dar sentido à dor e à morte, o conhecimento científico segue pistas em busca da verdade existencial para tornar mais feliz a vida na terra.

            


A Ilha do Conhecimento

“O não saber é a musa dos saber”

“A Ilha do Conhecimento” é o livro mais recente de Marcelo Gleiser, ilustre estudioso de filosofia e ciência. Professor, pesquisador, jornalista, o escritor carioca se tornou famoso no meio científico pela polêmica obra “A Criação Imperfeita”, onde tenta contestar o mito da criação do mundo por um ato único de um ser sobrenatural, confirmando, assim, a teoria evolucionista do britânico Charles Robert Darwin (1809-1882), exposta na imortal obra “A Origem das Espécies”.

O trabalho de Gleiser é fortemente polêmico por discutir a contradição colocada no próprio título do livro: se o Universo fosse “criação” de um Deus, não poderia ser “imperfeito”, pois à divindade se atribuem, além da onipotência, também a suma sabedoria e o amor infinito. Ora, o mundo pôde parecer ordenado e perfeito aos olhos limitados de Moisés, presumido autor do Gênesis e de outros livros da Bíblia hebraica, que viveu uns três mil anos atrás, quando se pensava que a Terra fosse uma plataforma chata no centro do universo, entre o Céu (acima) e o Inferno (em baixo), o Sol girando ao seu redor para aquecê-la.

Mas, já na Renascença européia, uma plêiade de filósofos, cientistas e artistas (Bacon, Galileu, Kepler, Copérnico, Newton, Leonardo da Vinci) começam a contestar o relato bíblico da criação do mundo em sete dias, por perceberem que a Terra é redonda, que gira na órbita do Sol e que esta estrela faz parte de uma constelação que, por sua vez, integra uma dos bilhões de galáxias existentes no universo até hoje conhecido. A ciência, aos poucos, munida de instrumentos cada vez mais aperfeiçoados (telescópios, microscópios, aceleradores de partículas subatômicas) vem descobrindo a mais íntima constituição do macrocosmo e do microcosmo.

Hoje em dia, face às cada vez mais surpreendentes descobertas científicas, fica difícil sustentar a teoria do design inteligente (TDI), a versão moderno do antigo argumento teleológico, que pretendia explicar a existência de um Deus pela ordem e perfeição que existiriam no mundo. Conforme essa tese, as características do universo cosmológico e dos seres vivos exigem a existência de uma causa inteligente, não podendo ser explicadas por processos não-direcionados, como a seleção natural ou o simples acaso.

Contrariamente, o estudo da natureza, a partir da teoria evolucionista de Darwin, até à moderna física quântica, formulada por Max Planck e outros colaboradores, especialmente Albert Einstein pela sua genial teoria da relatividade entre as categorias do espaço e do tempo, vem demonstrando que a origem do Universo e da vida no planeta Terra é um fenômeno muito mais complexo, irregular e assimétrico, do que se encontra escrito nos livros considerados sagrados. Durou milhões de anos a série de acontecimentos cósmicos e biológicos que possibilitou a formação de microrganismos numa atmosfera protegida das mortíferas radiações astrais. Portanto, a vida na Terra, na sua forma vegetal, animal ou humana, é conseqüência de um longo processo genético, não de um ato criativo, único e imediato. Herdamos características físicas e psíquicas de nossos ancestrais, remotos ou mais próximos.

Perguntaríamos aos adeptos do Desenho Inteligente: para quê o pressuposto Grande Arquiteto do universo teria criado bilhões de galáxias, colocado seres inteligentes apenas no minúsculo planeta Terra, feito uma bola com placas tectônicas que, ao deslocarem-se, causam terremotos e tsunamis, cujos habitantes, sujeitos a uma loteria genética (alguns com doenças físicas ou mentais ainda no útero materno), têm como destino o sofrimento e a morte? Como podemos pensar na existência de um Ser Sobrenatural Inteligente e, ao mesmo tempo, todo-poderoso e bom? Penso que ainda hoje é válido o argumento de Epicuro, o sábio grego do séc. III a.C, que, não conseguindo explicar a existência do mal no mundo, considerava a fé religiosa incompatível com a racionalidade humana:

Ou Deus pode e não quer evitar o mal: então não é bom;
ou quer mas não pode: então não é onipotente.
Em cada qual das duas hipóteses: ele não existe!

Marcelo Gleiser retoma as questões sobre ciência, filosofia e religião no novo livro A Ilha do Conhecimento, que tem o subtítulo “Os limites da ciência e a busca por sentido”. É do Prólogo desta obra que copiei a frase colocada na epígrafe deste meu artiguinho:

“O não saber é a musa dos saber”. A consciência da nossa ignorância deveria ser a grande inspiração para a busca do conhecimento. É impressionante notar como a genialidade humana encontra ressonância ao longo do tempo e do espaço. O estudioso brasileiro, através da pesquisa científica, chega à mesma conclusão do ateniense Sócrates (470-399), considerado o pai da filosofia, que afirmara: “Eu não sei nada: a única coisa que sei é de não saber nada”. Sócrates nos ensinou a pensar, como Jesus Cristo nos ensinou a amar. A meu ver, os dois maiores gênios da humanidade!

O cientista carioca se serve de uma metáfora para exemplificar os limites do nosso saber: a bela imagem da Ilha do Conhecimento perdida no Oceano do Mistério. Toda a herança da nossa cultura científica, filosófica, artística e tecnológica pode ser considerada como uma pequena ilha cercada pelo imenso oceano do Desconhecido. Na medida em que a ilha do conhecimento se amplia por novas descobertas, mais longe vão ficando os limites do oceano. Quanto mais aprendemos, mais aumenta a consciência da nossa ignorância. E isto porque não existe uma resposta final às nossas inquietações. E é bom que seja assim! Já pensou se a gente não tivesse mais nada para aprender? Seria o fim! O que distingue o homem do animal é a curiosidade, o querer saber. E as religiões não gostam disso: nosso pecado original, conforme a Bíblia, foi Adão ter comido a fruta do conhecimento do Bem e do Mal. Só ficando na ignorância ganharíamos o Paraíso!

Infelizmente, enquanto a ciência admite os limites do conhecimento e se corrige toda vez que novas descobertas invalidam alguma teoria antiga, as religiões ficam paradas no tempo, cada qual acreditando que seu Profeta recebeu o conhecimento da verdade existencial graciosamente, por alguma revelação sobrenatural. É o dogmatismo, a imposição do princípio da autoridade, na religião como na política, que impede o progresso civilizacional. É uma pena que hoje, em pleno século XXI, ainda haja povos, feito ovelhas, guiados cegamente por pastores religiosos ou líderes políticos. Não precisa provar que quanto menor for o acúmulo de cultura na Ilha do Conhecimento de um país, menor será seu IDH (índice de desenvolvimento humano): basta olhar a diferença do nível de vida entre um indígena africano e um suíço civilizado. Se valesse o apelo ao sobrenatural, mediante a quantidade de orações a divindades, o índice seria invertido!


Tradição e traição

            O artigo de Wilson Daher “O bom e o correto”, publicado na página Rio Preto Pensa do Diário de sábado 5/7, é um primor de inteligência reflexiva, que nos ajuda a compreender não apenas os conflitos de ordem ética e política, mas da própria vida em sociedade. Comentando o livro “A alma imoral” do escritor judeu Nilton Bonder, o articulista riopretense releva como a transgressão está na origem da evolução humana: se Adão e Eva não tivessem comido a fruta proibida da árvore do conhecimento, conforme o mito judeu-cristão contido na Bíblia, não teriam tido consciência da nudez, da vergonha, do prazer sexual, a humanidade ficando até hoje no estágio da ingenuidade infantil. Se for um fato incontestável que é o espírito de curiosidade, o querer saber, que distingue o gênero humano da animalidade, promovendo o progresso da ciência e das artes, temos que considerar o questionamento de valores tradicionais como fator de melhoramento social. Sem trair a tradição não há evolução. Não porque Moisés e Maomé foram ferozes guerreiros seus fiéis devem continuar se matando uns aos outros, seja qual for o motivo. Não tudo o que é legal deve ser considerado moral, se não o sentimos como justo e bom, pois qualquer autoridade religiosa, jurídica ou política está sujeita ao engano. Leis irracionais não deveriam ser cumpridas. A meu ver, o pai da ética moderna foi o filósofo Immanuel Kant, especialmente pela obra “Crítica da Razão Prática”(1788), onde fundamenta na razão (e não nos dogmas de fé, que variam de uma crença para outra) os princípios gerais da ação do homem em relação aos outros e à busca da felicidade,  formulando o famoso imperativo categórico: "Age de maneira tal que a máxima de tua ação sempre possa valer como princípio de uma lei universal". Se vigorasse o princípio moral do respeito ao outro, não haveria tanta injustiça, violência, corrupção, em país algum!


A força cósmica do Amor

            Que bom seria se 12 de junho, o dia dos namorados, não servisse apenas para fazer a alegria dos comerciantes pela troca de presentes, mas nos fizesse refletir um pouco sobre o sentido do amor entre os homens. Os antigos gregos inventavam mitos, histórias fantásticas, na tentativa de explicar a origem de fenômenos da natureza ou comportamentos humanos. Assim, o mito de Eros (o adjetivo erótico passou a indicar a atração sexual), nascido do Caos ou Ovo primordial, o mundo da eterna e misteriosa escuridão, foi inventado para explicar a conjunção entre as divindades do Céu e da Terra, o elemento masculino com o feminino, que deu origem à vida e à coesão interna do Cosmos. Permitam-me pensar que a atual física quântica, superando as antigas teorias cosmológicas do bíblico Moisés e do egípcio Ptolomeu, que colocavam a Terra no centro do universo, bem como o sistema copernicano de Galileu, Newton, Leonardo da Vinci e de outros cientistas da Renascença européia, que descortinaram o céu estrelado mostrando a imensidão das galáxias, está retomando, de certa forma, o antigo mito de Eros, ao considerar a energia da matéria escura (invisível, pois subatômica) como as ondas que mantêm coesos corpos e almas, astros e planetas. Esta atração universal anula o vazio e a diferença entre tempo e espaço, mantendo a harmonia entre todos corpos terrestres e celestes.

            O Eros, que hoje deveríamos cultuar, é o amor no seu sentido integral, que engloba corpo e alma.  A atração puramente física é mais animalesca do que humana.  É apenas o bicho que tem o período do cio.  O homem e a mulher se amam (ou deveriam se amar!) sempre e em todos os lugares por uma comunhão de sentimentos que transcende o aspecto físico. O erotismo, que verdadeiramente funciona e que faz perdurar a atração recíproca por longo tempo, está no olhar apaixonado, na admiração que o amante sente pelas qualidades físicas e espirituais que consegue enxergar na pessoa amada. O fator amoroso, que realmente e de uma forma mais intensa e duradoura estimula o desejo, se encontra na poesia lírica, na pintura, na dança, nos filmes sentimentais, na arte em geral, pois supera o nível do real e penetra no mundo da fantasia, do sonho, do vago sentimento do inacessível.  Por esse prisma, os Cantos de Salomão e a poesia trovadoresca são mais eróticos do que o Kama Sutra, pois o prazer sexual está mais no sugerir do que no mostrar totalmente, no claro-escuro, na promessa do idílio, no mistério a ser desvendado, na repetição do ato do amor como se fosse sempre pela primeira vez.  Como diz a poeta Adélia Prado, “erótica é a alma”! 

A meu ver, é a escritora existencialista francesa Simone de Beauvoir, amante do filósofo e poeta Sartre, quem melhor define a essência da relação carnal: “O erotismo implica uma reivindicação do instante contra o tempo, do indivíduo contra a sociedade”.

Nessa definição encontramos os dois aspectos fundamentais do amor humano: a superação da morte e da escravidão moral. Pelo prazer sexual, ao mesmo tempo em que nos esquecemos do momento presente pela intensidade da paixão, nos tornamos eternos por continuarmos a viver nos filhos que geramos. O outro aspecto é a afirmação do direito ao prazer natural e individual contra as imposições de ordem social ou religiosa.  Aqui cabe a referência a outro mito grego, o do andrógino, ser bissexuado ou hermafrodito: narra a lenda que esta entidade primordial, por somar o princípio masculino com o feminino, era poderosa ao ponto de despertar o medo em Júpiter, o pai dos deuses. Este, então, encarregou Vulcão para cortar o corpo do andrógino pelo meio, dividindo o masculino do feminino.  Essa seria a explicação mítica da realidade psicológica da busca incessante da outra metade que complemente o ser humano. É uma pena que os príncipes de estados e de igrejas, em lugar de impor ideologias que não satisfazem nossas necessidades, não se empenhem em promover o amor entre todos os cidadãos mediante a prática da justiça social. 


Moral tribal

            Na entrevista a Veja desta semana (“Por um mundo pós-tribal”, 19/03), o filósofo e neurocientista Joshua Greene, da Universidade de Harvard, salienta que nossa atividade mental produz duas linhas básicas de pensamento: uma modalidade instintiva e rápida; e outra, lenta e reflexiva. A primeira, localizada no córtex pré-frontal do cérebro, responde pelas intuições ou emoções provenientes de herança genética, evolução biológica, tradição cultural, aprendizado. Mas, infelizmente, as convicções arraigadas nas várias sociedades diferem umas das outras, seguindo normas políticas e crenças religiosas contrastantes. Cada qual, achando que seus valores e códigos de conduta são os verdadeiros, acaba querendo impô-los a outros povos. Daí as contínuas lutas de judeus contra árabes, nazistas contra comunistas, xiitas contra sunitas, russos contra ucranianos, capitalistas contra proletários. O entrevistado citado fala de “Tribos Morais” (é o título de seu último livro) ao tratar de grupos sociais que, como tribos primitivas, não respeitam os direitos de outros que agem diferentemente. Ele opõe, à moral tribal, fundamentada sobre dogmas inquestionáveis, o pensamento livre e pragmático de progressistas que ativam outras áreas cerebrais, que nos estimulam a refletir sobre as conseqüências de nossos atos, em lugar de seguir facciosas e desastradas ideologias políticas ou religiosas, que atrasam o desenvolvimento humano.

 

 


Palestra: “Filosofia da História (Vico e Croce)”, no curso “Brasil italiano”, promovido pela Amici d’Italia e Academia de Letras, no Automóvel Clube de São José do Rio Preto, às 20 horas, quarta 24 de abril de 2013, por Salvatore D’ Onofrio: entrada livre.

 

Gianbattista Vico (1668 -1744): Historiador, filósofo, jurista.

Benedetto Croce (1866 -1952):  filósofo, historiador, esteta, político.

Dois fatores associam estes dois grandes pensadores italianos: a vivência na mesma cidade e o culto à história.

 

I) Os dois viveram e morreram em Nápoles (Magna Grécia), cidade no Sul da Itália, famosa por belíssimas paisagens (baía, Vesúvio, Pompéia, Capri, Ischia, Sorrento, costa amalfitana), pela melodia das canções napolitanas (em dialeto local: “O Sole mio”, “Torna a Surriento”, “Santa Lucia”, “Funiculì, Funiculà” e tantas outras) e pela culinária mediterrânea (massas, pizzas, café expresso).

2) Culto da História: os dois se deixaram levar pelo axioma latino “historia  magistra vitae”. A história é a mestra da vida no sentido de que o presente deve ser vivido com base na experiência do passado e com olhos postos no futuro. O passado é a tradição sem a qual não há cultura. O gênio é um anão sentado sobre uma montanha, o  gigante do passado, ao que acrescenta algo mais. Mas o passado deve ser visto sem idolatria, pois não é perfeito, nem imutável. Ele deve ser estudado para não repetir os mesmos erros, que travam a evolução da humanidade. A imobilidade é a morte: Lúcifer preso num lago de gelo até o pescoço, no 9º (último) círculo do “Inferno” de Dante.

As Escrituras consideradas Sagradas (Os Vedas, a Bíblia, o Corão) remontam a uma época em que se acreditava que a Terra era uma plataforma fixa sobre o mar, entre o Céu e o Inferno, o Sol girando ao seu redor para aquecê-la. Além de lorotas cosmológicas, os ensinamentos do monoteísmo judaico, cristão e muçulmano contêm horrores éticos, que comprometem a convivência social, como guerra, escravidão, preconceito racial (africanos com a marca de Caim), condenação à morte de homossexuais, adúlteras, infiéis, heréticos, filhos desobedientes.

Só a partir da Renascença, com a invenção de bússolas e telescópios, foi verificado que a Terra não era o centro do Universo, mas apenas um planeta girando ao redor do sol. Com a Revolução Francesa (1789), os ideais de liberdade, igualdade e fraternidade e o trabalho dos enciclopedistas fizeram o homem tomar consciência de que o estudo da natureza, pela ciência e não pela crença, é direito e dever de todo ser pensante. Depois veio Darwin, com sua “Origem das Espécies” (1859), a substituir o dogma da criação pelo princípio da evolução, com base na lei da seleção natural.

A crença na criação foi abalada mais ainda pela moderna astrofísica que calcula que apenas a Via Láctea, a nossa galáxia, tem, aproximadamente, 200 bilhões de estrelas, cada qual com vários planetas e luas. Se somente a Via Láctea é composta de quase um trilhão de mundos, imaginem a imensidão de um Universo com centenas de trilhões de galáxias! Por que Deus, Arquiteto e Pai eterno, teria criado uma infinidade de mundos, se queria apenas que os habitantes do minúsculo planeta Terra O glorificassem?

Mais recentemente, a física quântica vem demonstrando que não existe o vazio, mas apenas o vácuo composto pela matéria ou energia escura, que dá unidade a todos os corpos celestes, formando a harmonia do Universo. Einstein, o pai da teoria da relatividade, demonstra que é inesistente a separação entre tempo e espaço.  A neurociência, por sua vez, está confirmando a teoria do “ilemorfismo”, a conjunção inseparável da matéria (ilê) de sua forma (morfê = idéia, espírito ou alma), de que já falava o filósofo grego Aristóteles, discordando de seu mestre Platão que imaginava o mundo das idéias existindo fora da realidade física. Para Aristóteles, a parte espiritual do homem (a alma) é distinta, mas não separável de sua parte material (o corpo). O mesmo conceito é utilizado pelo lingüista suíço Ferdinand de Saussure ao estudar a relação entre significante e significado, usando a bela imagem da folha de papel com as duas faces, distintas, mas inseparáveis.

Gianbattista Vico, que morreu algumas décadas antes da Revolução Francesa, considerado o pai da Filosofia da História, em sua obra principal, “Princípios de uma Ciência Nova”, consegue formular uma síntese entre a teoria linear do desenvolvimento histórico da humanidade, centrada na idéia do progresso, e a teoria cíclica dos cursos e recursos históricos, baseada no princípio da recorrência. Interpretando livremente o pensamento do historiador napolitano, pela teoria linear ou do desenvolvimento irreversível, um período da história do homem divide-se em três etapas, correspondentes aproximadamente à evolução do ser humano:

fase religiosa (infância), a época dos deuses e dos reis, quando predomina o governo teocrático, o culto dos heróis nacionais, o instinto, a natureza violenta, a imaginação;

fase filosófica (juventude), a época da razão, do pensamento reflexivo, da criação artística mais apurada (teatro, poesia lírica, artes plásticas);

fase científica (maturidade), a época da observação e da experimentação, politicamente centrada na democracia e na ordem social.

Pela teoria cíclica, diferentemente, cada período se renova ao longo da história de uma forma alternativa, o fim de um ciclo de cultura dando origem a uma nova fase de barbárie, e assim sucessivamente. Isso explicaria por que civilizações outrora gloriosas, como a grega, a egípcia, a chinesa, entraram em declínio, quase voltando ao estágio primitivo. Talvez o entendimento da história como “cursos e recursos” tenha influenciado o filósofo alemão Hegel (1770-1831) na formulação do famoso processo dialético: tese, antítese e síntese.

Benedetto Croce releva a importância cultural do seu patrício napolitano no artigo Filosofia di Giambattista Vico (1910), acrescentando, contra o pensamento positivista da sua época, que a realidade, sendo de natureza espiritual, não deve ser entendida somente à luz da ciência, implicando no conhecimento da filosofia, da arte, da ética e da economia. E a única disciplina que engloba todo esse saber é a História.  Croce passa, então, a elaborar uma versão filosófica do liberalismo. Para ele, a própria história não é outra coisa senão a gradual afirmação da liberdade.

Daí sua rejeição ao fascismo, após um primeiro momento de namoro com as propostas patrióticas de Benito Mussolini. Quando o estudioso napolitano percebe a essência totalitária do governo fascista, querendo se impor pela violência e não respeitando as liberdades cívicas e individuais, ele se revolta publicamente contra o regime ditatorial, redigindo o “Manifesto degli intellettuali antifascisti” (1925).

Benedetto Croce foi um grande erudito e esteta, escrevendo brilhantes ensaios sobre a filosofia de Aristóteles e de Hegel, a poesia de Dante, o teatro de Shakespeare, entre tantos outros.  Ele passa a considerar a Utilidade (economia) como mais uma categoria da espiritualidade humana, junto com a Beleza (estética), a Bondade (ética) e a Verdade (lógica): o belo, o bom, o verdadeiro e o útil formam uma coisa só. E o caminho para viver o conjunto dessas categorias é o pensamento reflexivo sobre a história, acompanhando o progresso científico e a evolução da arte.

 Essa exaltação dos valores humanos, proposta pelo crítico italiano, recentemente é retomada pelo psicólogo evolucionista Steven Pinker (Os Anjos Bons da Nossa Natureza, 2013), à luz da “revolução dos direitos”, que estourou em 1968 em Paris, espalhando-se por outras cidades do mundo inteiro. Pinker analisa a tendência humana da razão e empatia em luta contra os instintos selvagens do egoísmo e da violência.  Ele está convencido de que o progresso social poderá ser acelerado pelos avanços científicos, especialmente se problemas políticos, econômicos, judiciários e éticos forem submetidos a abordagens racionais, deixando de lado crenças em ídolos religiosos ou lideres políticos. Se já conseguimos debelar a escravidão, por que não podemos diminuir, cada vez mais, o autoritarismo, a corrupção, a impunidade, a intolerância religiosa, as injustiças sociais, qualquer forma de preconceito?

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Sentido do CARNAVAL

 “Não me leve a mal, hoje é Carnaval”

(canção carnavalesca)

            Do italiano “carnevale”, termo formado a partir do latim medieval carnem vale, que significa “adeus à carne”, o carnaval é uma festa popular bem antiga, cuja origem pode ser encontrada nas festividades para comemorar a colheita da uva, a vindima, em honra do deus grego Dionísio, a mesma divindade sendo cultuada em Roma com o nome de Baco, deus do vinho.  As “bacantes” eram as mulheres que participavam dos ritos orgiásticos, chamados “bacanais”.  Na Idade Média, com o nome de carnaval e anualmente, os cristãos passaram a festejar a véspera da quarta-feira de cinzas, quando começava  a Quaresma, os 40 dias de penitência antes da Páscoa, durante os quais era proibido comer carne.  Na Terça Feira Gorda e no fim de semana que a precedia, os devotos de Cristo se esbaldavam em comer “polpette” (almôndegas), tomar vinho, dançar desenfreadamente, usando máscaras, para que as pessoas não fossem identificadas.

O carnaval reveste-se de características próprias, conforme o tempo e o lugar. Na Europa, o melhor carnaval é o de Veneza, famoso pelo desfile e baile das máscaras; no Brasil, sem dúvida, o Rio de Janeiro apresenta a melhor festa carnavalesca, apreciada no mundo inteiro, pelo desfile dos carros alegóricos em lugar fixo e apropriado, o sambódromo.

            O carnaval é uma forma de espetáculo sincrético, de caráter ritual, onde não há separação entre atores e espectadores, sendo vivido por todos.  Durante a época carnavalesca há uma suspensão das leis sociais, das interdições morais, das regras normais de vida.  Anula-se a diferença de classes e de sexos, a hierarquia, a etiqueta, e se estabelece uma nova forma de relações inter-humanas, fundada no contato livre e familiar entre todos, sem medo de sanções. A língua italiana tem uma expressão que define bem essa liberdade: nel Carnevale, tutto vale (“no Carnaval, vale tudo”), cujo equivalente em português pode ser encontrado nos versos de uma marchinha carnavalesca: “Não me leve a mal, hoje é Carnaval”.

Entre os atos carnavalescos, que legitimam o mundo às avessas, o mais importante é o rito da “entronação” bufonesca do Rei do carnaval. Nas Saturnálias romanas elevava-se ao trono um escravo, que era servido e venerado por seus patrões. O ato ambivalente significava a relatividade de toda estrutura social, a elevação e a queda do ídolo, a profanação do sagrado, a paródia dos valores sociais.  Na percepção carnavalesca do mundo são exaltadas contradições e misturas: a conjunção do masculino e do feminino, do sagrado e do profano, do alto e do baixo, do belo e do feio, do sublime e do vulgar.

A identidade dos contrários e a não-identificação da pessoa são facilitadas pelo uso da máscara ou da pintura do corpo com cores berrantes.  Predomina o vermelho, a mesma cor do fogo e do sangue, símbolo universal do princípio da vida e da força. Junto com a cor vermelha, nos folguedos do carnaval é prestigiada a gordura, símbolo da riqueza e da abundância.  O Rei Momo é geralmente configurado como uma pessoa gorda, de faces rosadas, com um largo sorriso de prazer satisfeito.  Enfim, é o id freudiano que, nos dias de carnaval, acaba se sobrepondo ao superego que controla a vida cotidiana, liberando o uso do álcool e de roupas extravagantes, a nudez e a libido.

            Este espírito carnavalesco, que o filósofo alemão Nietzsche chama de “dionisíaco”, em oposição ao espírito “apolíneo”, de Apolo, o deus da luz e da ordem, está presente em quase todas as formas de arte, onde predomina a valorização da  liberdade individual, do instinto natural que nos faz buscar a felicidade, em contraste com as imposições sociais de cânones políticos, religiosos, jurídicos, éticos. Os maiores gênios da humanidade (Darwin, Shakespeare, Dostoievski, Picasso, entre tantos outros) foram todos revolucionários.

 


Autoconhecimento

            Com o título “Para ser feliz basta ter cabeça”, a revista Bem-Estar desta semana (Diário 9/12) traz reflexões do psiquiatra Wilson Daher, que cita trechos do meu livro “Pensar é Preciso”, disponibilizado para consulta gratuita na Wikipédia. A jornalista Gisele Bortoleto está de parabéns pela matéria, evidenciando como filosofia e psicologia andam de mãos dadas na tentativa de entender o mistério da alma humana e nos propiciar um melhor nível de vida. Nossas ações são dirigidas por cognições formadas a partir do caldo cultural em que os diferentes núcleos sociais foram criados. Quer dizer, agimos conforme tradições milenares, sem perguntar se os princípios morais a ser obedecidos nos levam à felicidade individual ou coletiva.

 Há milênios, gente sábia já percebeu e disse que o que diferencia o ser humano do animal é o uso da razão. Mas, infelizmente, a grande massa popular ainda não foi educada a pensar com sua própria cabeça, sendo induzida a acreditar bovinamente nas palavras de profetas ou de líderes políticos (Moisés, Cristo, Maomé, papas, rabinos, reis ou presidentes de Estado). Nossas crenças, inconscientemente, nos levam a julgar os outros e a nós mesmos, com base no “ELE disse”, desprezando verdade histórica, descoberta científica, raciocínio lógico, instinto, sentimento, bom senso. Os gênios benfeitores da humanidade foram os que conseguiram romper os grilhões da tradição, pensando com sua própria cabeça. Sejamos felizes sendo nós mesmos!


Éter e Bóson

Brilhante é o diálogo imaginado pelo cientista e articulista da Folha (29/07) Marcelo Gleiser (“Aristóteles e Higgs: uma parábola”) entre o filósofo grego Aristóteles (séc. 4º a.C) e o físico britânico contemporâneo Peter Higgs, sobre a constituição do cosmo. Os dois acham que não existe vazio, mas apenas vácuo, uma matéria ou energia escura, invisível a olho nu, que daria união aos vários elementos do Universo. O que o sábio grego chamava de “éter”, os cientistas modernos denominam “bóson”, uma subpartícula atômica. Gratificante é perceber que o conhecimento científico, que funciona pelo método da observação e da experimentação, chega a validar teses antes apenas deduzidas pelo pensamento lógico. Mais ainda: a filosofia e a ciência estão sempre prontas a corrigir erros, promovendo a evolução e o progresso, diferentemente do conhecimento ensinado pelas religiões, que é estático, parado no passado e baseado em dogmas, verdades consideradas indiscutíveis, pois pressupostamente de origem divina. A história nos ensina que também os profetas erraram e continuam se equivocando, só que nunca são corrigidos.


Ciência, arte e fé

Agradeço as palavras de elogio do amigo e colega Romildo Sant’Anna (“Reflexão”, Diário da Região 02/08) sobre meu artiguinho que tratou da coincidência entre filosofia e ciência no estudo do cosmo. Respeito o ponto de vista do ilustre docente e escritor quanto à crença na existência do sobrenatural, pois, como diz o ditado popular, religião e futebol não se discutem, visto que há fanáticos de cada lado. O que causa estranhamento é que o estimado professor, para sustentar a crença da intervenção divina no mundo natural, cite versos de Alberto Caeiro, o heterônimo de Fernando Pessoa que mais representa a faceta materialista e ateísta do imortal poeta português. Eis um trecho, do mesmo heterônimo e do mesmo poema citado pelo colega, “O guardador de rebanhos”:

“Não acredito em Deus porque nunca o vi.

Se ele quisesse que eu acreditasse nele,

Sem dúvida que viria falar comigo

E entraria pela minha porta dentro

Dizendo-me, Aqui estou!”

Verificamos, portanto, que textos poéticos, assim como versos de livros considerados sagrados, se prestam a interpretações contraditórias. E isso porque a arte e a religião têm o mesmo suporte, a fantasia, a imaginação. Diferentemente, filosofia e ciência se baseiam sobre raciocínio lógico, verdade histórica, observação e experimentação da realidade. Se, como sugere o muito estimado amigo, juntarmos as duas modalidades de conhecimento, corremos o risco de negarmos ou a fé ou a verdade. A meu ver, um filósofo ou cientista religioso, que acredita em milagres, não deixa de ser uma contradição em termos.


Escola da vida

“As religiões são intermitentemente úteis, eficazes e inteligentes demais para serem deixadas somente para os religiosos”

Esta epígrafe é o parágrafo final do recente livro do erudito filósofo britânico Alain de Botton “Religião para ateus” (ed. Intrínseca, 2011), já resenhado pela Folha de São Paulo várias vezes.  O autor salienta que os ensinamentos encontráveis nos textos sagrados das várias religiões devem ser seguidos por qualquer pessoa, mesmo que não acredite no sobrenatural. Também a meu ver, Moisés, Buda, Cristo, Maomé, ao pregarem o respeito ao próximo (não roubar os bens, a vida ou a honra de outra pessoa), não foram inspirado por nenhuma divindade, mas apenas pela exigência da vidaem sociedade.  Na era moderna, o filosofo alemão E. Kant (1724-1804) sintetizou os dez mandamentos bíblicos no famoso imperativo categórico: “não faça a outra pessoa o que não gostaria que fosse feito a você”.

O mérito das grandes religiões (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo) foi criar estruturas institucionais para pôr em prática preceitos de vida social, servindo-se da arte, que sempre surge junto com a fé, para dar asas à imaginação e à fantasia, na tentativa de superar as limitações da vida material, especialmente o medo da morte. Templos, estátuas, calendários, rezas, rituais, crenças na ajuda divina e em milagres, alimentam comunidades de fiéis onde se ensina a mesma doutrina ao longo de séculos. Tal persistência levou à formulação de dogmas, verdades de fé consideradas absolutas e indiscutíveis.  Acontece que, por existirem doutrinas divergentes e cada religião achar que apenas ela é “ortodoxa” (possuidora da fé verdadeira), o fanatismo continua provocando ódios e guerras sangrentas entre várias etnias, igrejas ou seitas.

Alain de Botton, ressaltando apenas o lado bom da religiosidade, sugere que os ateus aproveitem sua estrutura pedagógica para levar o conhecimento da cultura laica à grande massa do povo. Infelizmente, o progresso da cultura secular se interrompeu no início da Idade Média, quando, com a conversão do imperador Constantino, o edito de Milão de 313 deu ao Cristianismo o direito de sufocar as outras religiões e toda a cultura greco-romana, considerada pagã e pecaminosa. Os bispos foram fechando as escolas públicas que os romanos tinham construído nas colônias de celtas, gauleses e britânicos, alfabetizando e transmitindo noções de direito, literatura, filosofia, arte. Então, a educação do povo (99% analfabeta) foi reduzida a ouvir sermões de clérigos nas igrejas.

Pela força do poder eclesiástico, inverteram-se os papéis: os cristãos, de vítimas, se tornaram agressores. Basta lembrar o fim de Olímpia, antiga cidade grega onde começaram as Olimpíadas, famosa pelo belíssimo templo a Zeus, destruída a mando do imperador cristão Teodósio I, no ano de394. Aépoca das trevas durou mais de um milênio. A cultura secular começou a reflorescer na Europa na época da Renascença, quando os humanistas recuperaram parte da civilização pré-cristã.  Continuou no período do Iluminismo e de Positivismo. O filósofo francês Auguste Comte (1798-1857) sustentou a tese de que a humanidade, quanto à etologia (comportamento moral), ainda estava na fase da infância ou teológica, quando se acredita na existência de seres sobrenaturais que viriam em nossa ajuda. Ao passo que filosofia e ciência avançavam a largos passos. Ele propunha a fundação de uma “Religião da Humanidade”, igreja secular ou sociolatria que, questionando a validade e os resultados dos dogmas das várias crenças, buscasse os meios para alcançar a fraternidade entre os homens, a partir do nós mesmos.

“The School of Life” (Escola da Vida), além de ser o título de um filme famoso, é o nome de uma instituição criada em Londres, em 2008, pelo escritor Alain de Botton. A nova escola busca os ensinamentos de vida não apenas em profetas visionários, mas especialmente nos grandes gênios da humanidade: Homero, Sócrates, Horácio, Dante, Shakespeare, Leonardo da Vinci, Darwin, Freud, Dostoievski, Machado, Fernando Pessoa, Einstein. Uma disciplina (Ética ou Cidadania), dividida em temas (amor, morte, política, honestidade, civilidade etc.), ministrada da pré-escola aos vestibulandos, numa ordem crescente de compreensão, poderia aproveitar escritos desses e de outros mestres de sabedoria para melhorar o comportamento social, além de funcionar como auto-ajuda.


Em busca de equilíbrio

            “É impossível viver com prazer, sem viver bem, sábia e justamente;

            e é impossível viver bem, sábia e justamente, sem viver com prazer”

O dístico acima contém um ensinamento do filósofo grego Epicuro (341-270), a meu ver, o maior gênio do pensamento reflexivo da cultura ocidental, fundador da doutrina que passou a se chamar “epicurismo”. O sábio grego viveu alertando os homens contra o medo e a ignorância, questionando a existência de seres sobrenaturais interessados na sorte da humanidade, em face de cataclismos cósmicos, egoísmo, injustiça, sofrimento,  morte.  Um seu discípulo, o poeta romano Lucrécio (98-55), no poema “De rerum natura” (Sobre a natureza das coisas), descrevendo o sacrifício de Ifigênia, conduzida à morte pelo próprio pai Agamenão para atender à ordem da deusa Diana, exclama:

Até que ponto a religião pode nos induzir à maldade!”

 Passaram-se mais de dois milênios e os homens-bomba do fanatismo islâmico fazem horrores piores. Para Epicuro, o cultivo da inteligência deveria nos levar à percepção de que o objetivo primordial de nossa existência é viver satisfazendo as necessidades naturais da melhor forma possível, pois a existência de outra vida pós-morte é pura ilusão.  Mas a busca do prazer tem seus limites, sob pena de causar sofrimentos.  O prazer racional (humano), diferentemente do animalesco, reside no meio termo, no equilíbrio entre dois extremos, devendo-nos afastar de qualquer excesso na comida, na bebida, no sexo, na ambição. Portanto, o prazer tem que ser “ponderado”, calculado, para que suas conseqüências não sejam nocivas. Além disso, a satisfação individual não pode ofender o sentimento da amizade entre os homens, ninguém podendo ser feliz à custa da desgraça alheia.

            A epígrafe nos ensina que a moral epicurista relaciona o prazer com a sabedoria e a justiça. Uma pessoa desonesta ou sem discernimento dificilmente poderá ser feliz. Mais importante ainda é refletir sobre a necessidade do princípio do equilíbrio vigorar não apenas no plano ético, mas também em todas as esferas de atividades humanas exercidas em sociedades que se queiram civilizadas: na religião, na política, na economia. Mas, infelizmente, a verdade e a justiça, as duas principais categorias éticas do espírito humano, que deveriam orientar a vida em sociedade, ainda não integram nossa realidade existencial, relegadas ao mundo do mito e do ideal.

Enfim, vivemos sob a égide da iniqüidade e da fraude. Os cidadãos são continuamente enganados pelos políticos que prometem cuidar da educação, saúde, transporte coletivo, segurança, mas utilizam nosso dinheiro para se enriquecerem; o poder judiciário se cala perante as enormes injustiças sociais; as igrejas prometem milagres em troca de dízimos. Explorando a boa fé da grande massa popular, os detentores do poder político, econômico e religioso formam monopólios, oligarquias, cartéis, concentrando as riquezas nacionais nas mãos de uma minoria oportunista.

Felizmente, uma boa parte da massa pensante, ao mesmo tempo em que está se  revoltando contra o domínio do capitalismo selvagem e da globalização, rechaça também o comunismo estatizante e burocrata. O movimento “Ocupe Wall Street”, com o lema “somos 99%”, está reivindicando os direitos da grande maioria do povo. Os que se acamparam no Zuccotti Park de Nova York, representando as aspirações das inúmeras redes sociais da internet, estão tomando posição contra os magnatas do mercado financeiro e imobiliário, que criaram “bolhas” de valores inexistentes, causadores de sucessivas crises econômicas no mundo inteiro.

Esses jovens tentam reverter tal cultura da falsidade, do mundo das aparências, da dependência de ídolos ou líderes, perguntando-se por que a sorte de uma nação e da humanidade toda deva estar concentrada apenas nas mãos de 1% da população. É consolador verificar que está acabando a convivência pacífica com a desigualdade, rumando para a busca de um equilíbrio social.


O Desencanto Humano

A entrevista de Lars Von Trier, o diretor dinamarquês do filme “Melancolia”, à revista Veja (7/9/11), retoma uma temática fundamental do ser pensante: qual é o sentido da vida humana perante a dor e a morte. O sentimento da melancolia, que a psicanálise trata como estado depressivo, se manifesta principalmente nas pessoas mais sensíveis, que costumam analisar comportamentos e relacionamentos. O homem, como o animal, para satisfazer os instintos básicos da conservação própria e da espécie, é induzido a matar seres vivos (vegetais e animais), apossar-se de bens alheios, sofrer e causar sofrimentos inúmeros. Mas, enquanto o animal faz isso naturalmente, sem percepção e, portanto, sem remorso, o homem tem consciência da maldade que sofre ou comete, sendo vítima do sentimento de culpa, da dor da doença, do pavor da morte.O cineasta releva que se, apenas por hipótese (ele se confessa incrédulo), o Universo tivesse sido criado por um ente sobrenatural, este Deus teria sido injusto para com o homem, pois teria dado vida a um ser que nasce para sofrer e morrer com a consciência disso. Por isso, a revolta da criatura contra o suposto sádico criador se tornou um tema muito explorado, especialmente na época do Romantismo.

O protagonista da peça Caim, do poeta inglês Byron, se pergunta por que deveria agradecer a Deus por tê-lo feito de pó e destinado a voltar para o pó. O personagem bíblico é a representação humana da revolta contra o poder absoluto, que encontramos na mitologia pagã (Titãs contra Júpiter) e cristã (Satã contra Deus).Na verdade, as religiões, todas elas, surgiram do medo e da ignorância dos fenômenos naturais. Povos primitivos da Índia, do Oriente Médio, da Grécia, não se conformando com o sofrimento e a morte do ser humano, foram imaginando a existência de outro mundo sobrenatural e eterno, povoado por espíritos sem matéria, ao qual o homem estaria predestinado, após a breve passagem por este vale de lágrimas. Isso nos vieram ensinar sucessivos profetas (Moisés, Buda, Cristo, Maomé), que viveram na época em que a Terra, chata e imóvel, era considerada o centro do universo, e não um minúsculo planeta que gira ao redor do Sol, este, por sua vez, uma pequena estrela na órbita de uma entre milhões de constelações. 

 A palavra de presumidos enviados de Deus veio reforçar o imaginário popular, colocando a salvação do homem num mundo extraterreno, acreditando-se em intervenções divinas,em milagres. Mitosforam se tornando verdades de fé inquestionáveis, que criaram caldos culturais em que vêm se formando gerações de jovens nas diversas nacionalidades, conforme ambientes e costumes diferentes. Assim, o judeu é educado a discriminar o árabe, o cristão o muçulmano, o branco o negro, o católico o protestante.  Mas, se uma tradição cultural é necessária, pois a sabedoria se passa de pai para filho e, sem a memória do passado, não podemos sequer imaginar qualquer coisa que seja, de outro lado, se não questionarmos a educação que nos está sendo imposta, o homem, como ser social e internacionalmente relacionado, não poderá avançar do ponto de vista civilizacional. Precisamos abandonar a casca velha do egoísmo, do preconceito, da ilusão da existência do sobrenatural, tornada anacrônica face às recentes descobertas da neurociência, física quântica, teoria da relatividade que anula a dicotomia espaço-tempo. Eduquemos, portanto, nossos filhos a pensarem por si próprios, a não repetirem  o que os outros disseram ou fizeram sem questionar, fechando os olhos à verdade histórica, ao raciocínio lógico, ao progresso da ciência. O melhor antídoto contra a melancolia, o mal da depressão e outros infortúnios é a conformação com nossa condição humana de seres nascidos para a morte, com defeitos e qualidades. A felicidade (e a nossa eternidade!) está no filho que criamos, na árvore que plantamos, no poema que escrevemos: não estamos deprimidos, apenas desocupados!


Inteligência X Miséria

Ao longo da minha carreira de professor, pesquisador e escritor, sempre tentei refletir sobre o “intelecto”, quer dizer cérebro, cabeça, razão, bom senso. A inteligência, na sua origem etimológica latina (inter + legere), significa “ler por dentro”, nas entrelinhas, compreender, o que constitui a faculdade própria do ser humano. Enquanto o animal é dirigido apenas pelos instintos, o homo sapiens tem a capacidade de refletir sobre seus atos e seus sentimentos. É claro que há vários níveis e tipos de inteligência. Os estudiosos distinguem entre inteligência emocional, matemática, poética, social, figurativa, cinética, artificial etc., cada qual, se cultivada ao extremo, pode produzir gênios como poetas, artistas plásticos, filósofos, cientistas.

Mas acreditamos também na existência de uma inteligência geral, comum a todos os seres humanos, que podemos chamar de lógica ou racional, fundamentada sobre o bom senso, que nos guia na busca cotidiana do conhecimento necessário para conseguir o bem-estar, o prazer existencial. Na verdade, falar de “intelectuais” como se fossem uma raça diferente dos seres comuns não faz sentido. A ilustre escritora Lya Luft, no “Ponto de vista” da revista Veja de 25/01/06, intitulado “As elites e o povão”, afirma claramente: “O intelectual de primeira é o que de verdade pensa, lê, estuda, escreve, pesquisa e atua”. Acontece que a inteligência, conatural ao ser humano, não se desenvolve automaticamente. Necessita ser cultivada, aguada diariamente, como se fosse uma plantinha. Pensar, ler, estudar, agir conforme o bom senso: eis as atividades que devem ser estimuladas em todo ser humano, desde a primeira infância. O espetáculo mais vergonhoso que um País possa apresentar é a existência de crianças abandonadas, pedindo esmolas, cheirando cola ou traficando drogas.

Cuidar da primeira infância e da adolescência é fator fundamental para a construção de uma verdadeira cidadania, de uma Nação que possa se considerar civilizada. A responsabilidade é tanto da Família quanto do Estado, pois o abandono das nossas crianças está na origem do desemprego, da delinqüência, da injustiça e da miséria social. Quando os pais não podem, a obrigação de assistir as crianças é do governo (municipal, estadual e federal), garantindo creches e escolas para todos e em tempo integral.. A criança deve ser assistida, no mínimo, oito horas por dia, para participar das aulas, fazer as tarefas de casa, ler jornais, revistas e livros, praticar um esporte e uma educação artística. No Orçamento da República, do Estado, do Município e da Família, a verba destinada à Educação deveria ser satisfatória, absolutamente prioritária e gasta com extrema eficiência porque, como está demonstrado pela experiência feita em vários países emergentes, está aí que reside o futuro de uma Nação.

E não se diga que não há dinheiro suficiente, quando os detentores do poder se dão ao luxo de fazer obras suntuosas, pagar altíssimos salários a burocratas, ter inúmeras mordomias, comprar aviões caríssimos, viajar em caravanas pelo mundo inteiro, promover festanças a custo do erário público, gastar uma fábula com propagandas e programas assistenciais eleitoreiros, que não resolvem os problemas sociais na sua raiz. É preciso acabar com uma cultura baseada na inversão de valores: há gente pobre que se lamenta por não ter dinheiro para comprar o leite das crianças, mas nunca renuncia à cervejinha e à “pitadinha”. Está na hora de mudarmos o conceito do nosso “herói nacional”, o homem sem caráter e sem cultura, o carnavalesco vagabundo e irresponsável, tipo Sargento de Milícia ou Macunaíma da tradição literária brasileira. Vamos propor como modelo de herói para nossos jovens o homem estudioso, trabalhador e responsável por seus atos! Num recente estudo, que se encontra no meu site, proponho uma “Campanha Nacional para a construção de uma Cidadania”, onde aponto problemas estruturais, sugerindo soluções possíveis a longo e médio prazo: “Não à Reeleição; Bipartidarismo; Escola integral; Planejamento familiar; Estado laico; Privatização da Saúde e da Previdência; Remuneração por mérito; Transporte ferroviário; Voto consciente”. Vamos discutir essas idéias, pois somente o cultivo da Inteligência nos salvará da Miséria social.


Saber é preciso

 “Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem superficial que nos esmaga” (Lya Luft)

O homo sapiens distingue-se de outros primatas (chimpanzés, orangotangos e gorilas) pelo desejo da descoberta, pela curiosidade, por possuir a capacidade de conhecer o mundo em que vive e ter consciência de suas sensações e de seus desejos, de seus sofrimentos e de seus prazeres, de seus direitos e de seus deveres. Portanto, o que deveria ser fundamental no homem é o exercício constante da faculdade de observar atentamente a realidade circundante, questionar os valores impostos pela sociedade, evitar os estereótipos lingüísticos e ideológicos, raciocinar com sua própria cabeça, além da doxa, da opinião comum, pois, como dizia o saudoso Nelson Rodrigues, "toda a unanimidade é burra".

Mas, infelizmente, o homem costuma renunciar à prática da reflexão, do bom-senso, do equilíbrio, da coerência. Vivemos o dia-a-dia sem nos dar conta do absurdo existencial. Falamos por automatismos, usando palavras e frases sem sentido, cultivamos hábitos nocivos a nossa saúde, seguimos rituais religiosos com pouca fé e muita hipocrisia, escolhemos políticos que não atendem aos interesses da coletividade, promulgamos leis injustas ou impraticáveis, estabelecemos padrões de comportamento que causam nossa infelicidade, pois não conseguem atingir o equilíbrio entre a necessidade da satisfação dos instintos individuais e as exigências da vida em sociedade. Enfim, o que reina soberana é a burrice, o que levou o filósofo francês Renan a afirmar: “a única coisa que nos dá a idéia do infinito é a imbecilidade humana”!

A teria do conhecimento ou a epistemologia (de episteme = ciência + logos = discurso), o ramo da filosofia que estuda como se dá a aprendizagem racional e científica, aponta várias modalidades de aquisição do saber. O conhecimento empírico tem como meio a experiência, a prática cotidiana da busca para satisfazer nossas necessidades físicas, especialmente os instintos fundamentais da conservação própria (pela comida) e da espécie (pela cópula). E isto nós temos em comum com todas as espécies animais e vegetais. Já o conhecimento técnico requer uma atividade mental própria do ser racional, capaz de adquirir um “saber fazer”, um know-how, pela aprendizagem: pescar, caçar, construir uma moradia etc. O conhecimento mítico, baseado na crença ou numa fé religiosa, sustenta-se sobre o princípio da autoridade, sem nenhuma fundamentação lógica: a verdade sobre a criação do mundo, a origem e o destino do homem, bem como seu comportamento moral, teria sido revelada por entes transcendentais (divindades) a seres privilegiados (profetas, apóstolos) e registrada em livros considerados sagrados (Bíblia, Corão etc.). Tal conhecimento dogmático é imutável e inquestionável, pois baseado no que “Ele disse”.

Já o conhecimento filosófico, recusando o apelo ao sobrenatural, lança mão do uso da razão, do pensamento reflexivo, para tentar respostas a vários interrogatvos, sendo o fundamental: existe vida espiritual após a morte corporal? De outro lado, a característica principal do conhecimento científico é o método objetivo e rigoroso de investigação, que se serve da observação e da sucessiva experimentação para formular hipóteses na tentativa de explicar fenômenos da natureza ou comportamentos de seres vivos, suplantando assim quer o princípio da autoridade, próprio do saber religioso, quer o pensamento abstrato, peculiar da busca filosófica.

Enfim, apontamos o conhecimento artístico, pois achamos que admirar um quadro, ler um romance, recitar um poema, assistir um filme ou uma peça teatral implica em captar uma parcela de sentido do mundo, que cada verdadeira obra de arte tem dentro de si. Usando a imaginação, a fantasia, a ficção, o artista nos mostra uma realidade bem mais profunda e verdadeira daquela que se encontra ao nível do parecer. Como afirma a escritora sulina citada na epígrafe, “pensar é transgredir”, é contestar os valores sociais que nos fazem sofrer!


Sobre Humanidade

Desconsiderando os fantasiosos relatos das várias religiões (mito greco-romano, narração bíblica, ensinamento do Corão e histórias das divindades hindus) e seguindo apenas as descobertas arqueológicas e genéticas, o mundo se formou há 13 bilhões de anos e os primeiros hominidas (os mamíferos arquétipos do homem) nasceram na África há cinco milhões de anos, aproximadamente. Muitos de nossos ancestrais, chegados a um estado avançado de desenvolvimento físico, decidiram emigrar do continente africano para outras partes do planeta, a partir de 100 mil anos atrás, mais ou menos. De acordo com cálculos de paleontólogos, o Homo Sapiens da África dirigiu-se, sucessivamente, em direção à Ásia (60.000 anos atrás), à Oceania (50.000), à Europa (35.000) e às Américas (15.000).

Por mudanças biológicas e culturais, o Homo arcaico europeu, chamado Neandertal, gradativamente teria sido substituído pelo Homo Sapiens, de origem africana. A pele humana branca começou a surgir no continente europeu a partir de 12 mil anos atrás. Portanto, o homem de cor branca que se achar superior ao negro está renegando suas origens. Qualquer ser humano é afro-descendente! Na sua generalidade, a civilização humana teria uma história de 6.000 anos, aproximadamente. Conforme a teoria evolucionista apregoada por Darwin, a transformação física do animal em gente levou milhões de anos. O primata demorou em levantar as patas dianteiras, fazendo com que a cabeça olhasse mais alto, expandindo o horizonte de sua visão. E, pelo menos do ponto de vista mental, a evolução continua, visto que o homem ainda não atingiu o limite que o separa da animalidade.

A humanidade continua a viver conforme os instintos mais baixos, seguindo a lei da selva, o mais forte comendo o mais fraco, como demonstram as guerras étnicas, a violência no campo e na cidade, o capitalismo “selvagem”, a corrupção política, a injustiça social, o egoísmo próprio dos seres primitivos. Quantos milhares de séculos ainda precisam transcorrer para que o homem ponha a funcionar a única faculdade que o distingue do animal, a sua inteligência? Será que é tão difícil entender que ninguém pode ser feliz no meio da miséria e que esta é causada pela ignorância? Por que gerar filhos, se não há condições econômicas e psíquicas para educá-los? Por que reeleger políticos corruptos que extraviam o dinheiro de nossos impostos, que deveria ser aplicado apenas para a saude, a educação, o transporte coletivo e a segurança pública?

Além de cessar de acreditar nos líderes políticos que sempre enganaram o povo, dando esmolas no lugar de promover a justiça social, é preciso se precaver também contra as igrejas que abusam da boa fé dos crentes com a promessa de felicidade num hipotético outro mundo. Como dizia Karl Marx, a religião é o "ópio do povo" que, como uma droga, anestesia a mente, desvirtuando a atenção dos graves problemas existenciais. Antes de o homem sonhar com a eternidade, deveria primeiro se preocupar em conseguir a plena humanidade, fazendo uso do raciocínio lógico, superando, assim, a animalidade. Se os milhões de rezas às várias divindades, ao longo do tempo e do espaço, não conseguiram, até agora, melhorar a sociedade humana, por que não tentar outro caminho de salvação, buscando a felicidade em nós mesmos pelo uso apenas da razão e do bom senso? Como disse Jesus Cristo: “só a verdade vos salvará”! 


Instinto gregário

 O adjunto adnominal gregário vem de grei, substantivo galgado sobre o termo latino grege, que significa rebanho, manada. O adjetivo, portanto, diz respeito ao instinto animalesco de agregação, de juntar-se em grupos para poder sobreviver. Demorou milênios para o gênero humano se diferenciar das bestas, deixando de andar de quatro e levantando a cabeça para olhar mais longe.

A pergunta é quantos milhares de séculos ainda têm que passar para o homo sapiens usar a cabeça não apenas para embelezar o pescoço. Atualmente, o que distingue o homem do animal é somente o uso da razão, a faculdade de raciocinar por si próprio, a reflexão sobre o que acontece ao nosso redor. Mas, infelizmente, o homem ainda não conseguiu se libertar do instinto da dependência mental. Como formigas ou abelhas, o ser humano, com exceção dos grandes gênios da filosofia, das ciências e das artes, se deixa levar por automatismos psíquicos, repetindo hábitos atávicos e seguindo doutrinas de ídolos ou líderes, religiosos ou laicos.

 O povo tem preguiça de pensar, achando mais cômodo seguir normas éticas ditadas por profetas supostamente iluminados por alguma divindade, relegando a busca da felicidade e da justiça social num outro mundo, que ninguém sabe onde fica. Transcrevo um trecho do romance Aparição, do escritor português Vergílio Ferreira, onde o pai da jovem protagonista, um médico, se recusa a falar sobre política e religião: Eu sou religioso, acredito em Deus, em Cristo, no papa, no dogma, em tudo o que me ensinaram. Mesmo não tenho tempo para pensar mais no assunto. Tenho um Deus para me tomar conta da vida e da morte. Fico com o tempo livre para tomar eu conta dos doentes.

Eis a confissão do espírito gregário: a aceitação passiva dos padrões religiosos e morais conforme uma herança familiar e uma cultura milenar, sem se perguntar se correspondem à lógica do pensamento ou à verdade histórica. Não é sem motivo que o homem religioso é chamado de “fiel”, aquele que não muda, que acredita piamente no que está escrito em livros considerados sagrados ou nas palavras de prepostos divinos (padres, pastores, rabinos, aiatolás).

O pior é que a mesma indolência de refletir se verifica também no plano político. Acreditamos nas promessas de líderes de partidos e depositamos neles nossos votos, sem fiscalizar o que fazem com o dinheiro de nossos impostos. Nas recentes eleições municipais, quase todos os prefeitos no poder se reelegeram. Sua recondução se deve às virtudes da honestidade e competência ou ao uso da máquina do Estado? Seria tão fácil construir uma cidadania de verdade, se o homem parasse para pensar. Bastaria não reeleger ninguém para evitar o político profissional e a formação de redutos eleitorais. A renovação dos quadros políticos evitaria o surgimento de lideranças e desestimularia a ganância de aventureiros. Afinal, só uma manada de ovelhas precisa de um pastor!


Apelo à lucidez

Uma das poucas verdades incontestáveis foi revelada por Ernest Renan (1823-1892), o filósofo francês historiador das religiões: “a única coisa que nos dá a idéia do infinito é a imbecilidade humana”. Ao que parece fazer eco a expressão do saudoso dramaturgo brasileiro Nelson Rodrigues (1912-1980): “toda a unanimidade é burra”. Infelizmente, a inteligência humana se desenvolve muito lentamente. Foram preciso milhões de anos para que o primata hominídeo levantasse as patas dianteiras, seu olhar mirasse para o alto e o longe, no horizonte, adquirindo consciência da realidade em que vivia. O espanto face à imensidão e à complexidade do macrocosmo e do microcosmo levaram o homo sapiens a imaginar a existência de forças sobrenaturais, divindades criadoras e provedoras do universo.

Há vários milênios, os seres humanos, espalhados pelos cinco continentes, invocam vários deuses, suplicando uma ajuda do além, especialmente nos momentos de tristeza, de dor, da morte. Mas o que a história registra é a insensibilidade divina perante tantos cataclismos, que vitimam crianças e gente inocente: terremotos, tsunamis, estiagens, inundações, terríveis acidentes, deformações físicas e mentais, doenças incuráveis. Aqui vai uma pergunta natural, óbvia ou “acaciana”, no dizer de Eça de Queirós: por que continuar pedindo o auxílio divino, se este nunca chega? Até quando o ser humano vai acreditar em intervenções sobrenaturais, em milagres?

Os crentes de todas as religiões vivem afirmando que “a fé te salvará”, mas a história nos ensina que os povos que mais rezam são os que mais sofrem: tetos de templos desabando em cima de fiéis no próprio ato da prece. Não teria chegada a hora de mudarmos este paradigma para o homem encontrar em si próprio o caminho da salvação, da felicidade? Mais do que pela fé ingênua, o homem moderno deveria se deixar guiar pela verdade histórica, a descoberta científica, o pensamento reflexivo, o bom senso.

Mas, além do paradigma da crendice, deveria se quebrar outro hábito milenar: o da sujeição a um chefe político! Se a autoridade religiosa não resolve, muito menos podemos confiar na autoridade laica. Os homens têm que superar o instinto gregário pelo qual seguem um pastor, como uma manada de ovelhas. Ao longo dos séculos, o ser humano sempre se deixou dominar ou por ídolos religiosos ou por líderes políticos. Monarcas, tiranos, presidentes militares ou civis se apossam do dinheiro de nossos impostos para se enriquecerem. Recentemente, as modernas “democracias” substituíram a ditadura pelas armas pela ditadura pelo voto, os políticos utilizando o dinheiro de bancos e empreiteiras para comprar os sufrágios do povo pobre e desinformado, perpetuando-se no poder. Continua o estatuto da mendicância e da dependência: quando não se implora Deus, se suplica ao Rei ou ao Presidente! 

Precisamos implantar um novo paradigma de vida em sociedade, substituindo a caridade pela justiça social, cada qual ganhando conforme o mérito, abolindo qualquer forma de autoritarismo religioso, militar ou civil. Faz-se necessária uma “revolução cívica”, implantando um sistema político semelhante ao vigente no Norte da Europa, entre povos de cultura anglo-saxônica e escandinava: quem manda é um Primeiro Ministro, que pode ser deposto a qualquer momento, num sistema de bipartidarismo. Nesta forma de parlamentarismo, o partido vencedor nas eleições teria a maioria absoluta e poderia pôr em prática as promessas feitas, sem precisar da ajuda de partidos de aluguel.

No novo paradigma institucional, deveria ser tirado do político o direito de legiferar em causa própria e se enriquecer a custa do erário público. A política deveria ser encarada como vocação e não profissão. Só assim poderíamos acabar com a corrupção institucionalizada e a impunidade desavergonhada. E nós podemos fazer isso com a força do nosso voto consciente. Não fazê-lo, não é falta de lucidez mental? Até quando a massa popular vai continuar sendo estupidamente explorada? “Pensar é Preciso” é o título de um meu livro, onde apresento a história da estupidez humana.