Salvatore D' Onofrio
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Sumário da Palestra:

     Arte e Religião, Filosofia e Ciência

(Para uma espiritualidade humana)         por Salvatore  D’ Onofrio

Promoção da Academia Riopretense de Letras e Arte, no Rio Preto Automóvel Clube, 5ª, 28 de abril, 2011, às 20, 30 – Entrada franca.

 

Tópicos:

I- Arte e Religião  (= FANTASIA, ficção, sobrenatural, dogma)

II- Filosofia e Ciência (= REALIDADE, raciocínio, verdade histórica, observação)

 “Somos, concretamente, restos de estrelas animados de consciência”

                                                                                    (Marcelo Gleiser)

I-1: Alguns depoimentos sobre religião e arte

Nietzsche: “A ilusão é a essência em que o homem se criou”

Pablo Neruda:“As religiões foram berço de poesia,

e esta se juntou a elas fertilizando os mitos,

colaborando como o incenso no entardecer das basílicas”.

Ferreira Gullar:“A poesia existe porque a vida, por si só, não basta

NOTA: religião = medo, ignorância, dogma, fixidez, passado;

 arte = movimento, reinvenção da realidade.

 Se a arte, pelo recurso à fantasia, se relaciona com a religião, pela busca da novidade e criatividade está mais próxima da ciência (ficção>científica: J Verne, “Viagem ao centro da terra”, 1864).

 

I-2:  O politeísmo greco-romano

“Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles...”

Ilíada, de Homero, séc. VIII a.C, sobre a Guerra de Tróia, séc. XII. Poeta vate = Profeta (Moisés) – Escritura poética = escritura sagrada – Mitologia grega - Divindades cosmológicas: Sol (Apolo, Hélios), cultuado também por egípcios com o nome de Atum-Rã, primeiro forma de monoteísmo. Divindades antropomórficas: Júpiter, Minerva, Vênus, Marte, Dionísio (épos, ditirambo, Bacantes), vistas como protótipos humanos (mito de Édipo).

 

I-3:  O Judaísmo nacionalista

Deus disse então a Moisés: Dirás isto aos filhos de Israel: “Foi o Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, que me enviou...” (Gênesis)

Além da Grécia, outro braço da civilização ocidental é a cultura bíblica. O mítico Abraão é tido como patriarca de judeus, cristãos e muçulmanos. O profeta Moisés (séc. XII) não apresenta novidades que justifiquem uma revelação divina: o monoteísmo já existia no Egito faraônico e os Dez Mandamentos já se encontram no Código do Rei da Babilônia, Hamurábi. Sua importância está na formação da nacionalidade hebraica.

 

I-4:  Cristo: a humanização do divino

             “Cristo não pertence ao cristianismo, mas ao mundo inteiro”

(Mahatma Gandhi)

A novidade se deu com Jesus Cristo que apregoou uma ordem social diferente, tentando substituir a guerra pela paz, o ódio pelo amor. A genialidade de Jesus Nazareno está em prenunciar o que o filósofo alemão Emanuel Kant (1724-1804) irá chamar de “imperativo categórico”: a obrigação do respeito ao próximo. Mas Cristo não foi compreendido, sequer pelo povo palestino, que primeiro o condenou à morte e depois sentiu necessidade de ressuscitá-lo.

 

I-5: Maomé:  retorno ao passado

“Se um homem for surpreendido a dormir com uma mulher casada, ambos deverão morrer: o homem que teve relações com a mulher e também a mulher. Assim farás desaparecer esse mal de Israel” (Deuteronômio, XXII, 22).

No Corão, de Maomé (570? - 632), considerado o terceiro e último grande profeta (depois de Moisés e Jesus Cristo), encontramos trechos semelhantes que condenam os adúlteros a chicotadas e apedrejamento. Maomé é o equivalente árabe do judeu Moisés: formadores de nacionalidades peculiares que tentam se sobrepor a outras, inclusive pela violência, em nome de uma presumida revelação divina. O ódio entre raças ou religiões não faz sentido. Como disse Martin Luther King, a lei “olho por olho” acaba deixando todos cegos!

 

I-6:  Renascimento europeu: apogeu da cultura humanista

Renascimento significa “nascer de novo” após os sete séculos da primeira Idade “média”, entre o séc. V e XII, época de profundo obscurantismo – Segunda Idade Média e Primeira Renascença depois do Ano Mil - As Cruzadas - Línguas românicas – Dante Alighieri - Catedrais góticas, pintura, música gregoriana – Renascença propriamente dita: Grandes navegações e descobrimentos marítimos – Revolução comercial e Industrial - Retomada do ideal estético da cultura greco-romana (Os Lusíadas, de Camões, o teatro de Shakespeare) – Lutero: Reforma e Contra reforma.

 

II-1  O Pensamento reflexivo:

“O sábio duvida, o tolo acredita”

Na verdade, é a “dúvida”, o questionamento, a incerteza, que diferencia a Renascença da Idade Média. Dante (1265-1321) e Shakespeare (1564-1616): “To be or not to be”! Descartes (1596-1650) e a “dúvida metódica”: Cogito, ergo sum. O homo sapiens, antes da Renascença: Protágoras de Abdera (Sobre a verdade e Sobre os deuses): “o homem é a medida de todas as coisas”; Sócrates: “sei apenas de não saber nada” (“ironia” e “maiêutica”); Platão (Teoria das Idéias); Aristóteles (Ilemorfismo); Epicuro:“Ou Deus pode e não quer evitar o mal: então não é bom; ou Ele quer mas não pode: então não é todo-poderoso. Em cada qual das duas hipóteses, Deus não existe”; Lucrécio: “Tantum religio potuit suadere malorum!”; Horácio: carpe diem; in medio stat virtus; Santo Agostinho (354-430): A Cidade de Deus, As Confissões.

 

II–2 A ciência e a espiritualidade humana

            Quem faz milagres é a ciência, melhorando nosso nível de vida.

A ciência, diferentemente da religião, corrige seus erros: Ptolomeu (geocentrismo) > Copérnico (heliocentrismo). Contribuições renascentistas de Newton, Galileu, Leonardo da Vinci. Euclides (física linear) > Einstein (relatividade e física quântica). Marcelo Gleiser (A criação imperfeita): “somos restos de estrelas animados de consciência”. Este cientista utiliza a imagem da “praia vista à distância” para explicar a realidade quântica, regida pelo Princípio da Incerteza (PI). Estudo das três origens: do Universo, da Vida e da Mente.

Darwin, A origem das espécies (1859) – Evolucionismo vs Criacionismo. A vida = movimento; as menores unidades formadoras do átomo são “cordas” vibratórias; existe o vácuo habitado pela matéria /energia “escura”, mas não o vazio; o Big Bang seria o primeiro dos Big Five, os enormes cataclismos que destruíram ¾ das espécies: o último acabou com os dinossauros, 65 milhões de anãos atrás. Lavoisier, “nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma”. Provavelmente, não houve Princípio e não haverá Fim do Universo: o Apocalipse é uma invenção eclesiástica.

Somos “poeira de estrelas” porque, na longa corrida evolutiva, a matéria inorgânica se transformou em orgânica, dando vida ao vegetal, ao animal, aos primatas, ao homo erectus, até chegar ao homo sapiens, 200 mil anos atrás, no sudoeste da África. O que torna um ser pensante é, essencialmente, a evolução do cérebro. São os neurônios (células cerebrais) que desenvolvem o raciocínio, a sensibilidade, os princípios cívicos e éticos. A moderna neurociência está provando que pessoas afetadas por qualquer dano cerebral apresentam alteração de personalidade. Por isso, o único órgão humano que não pode ser transplantado é o cérebro. A alma (espírito ou mente), pois, não existe sem a massa encefálica, como já intuiu o filósofo grego Aristóteles.

Infelizmente, precisamos nos contentar com o mundo em que vivemos, lutando para melhorá-lo. Quem faz milagres é a ciência e não a religião. Nas últimas décadas, com o avanço da medicina (vacinas, antibióticos, transplantes), a expectativa de vida dobrou. Modernas máquinas de mapeamento genético estão próximas de identificar doenças antes que elas se manifestem. Os circuitos integrados (chips) revolucionaram o mundo da eletrônica. A nova tecnologia nos propiciou confortos inimagináveis antigamente: celular, internet, wikipédia, disponibilizando cultura gratuita e tirando os homens do isolamento. A recente simbiose do homem com a máquina de silício está derrubando ditadura e questionando os fundamentalismos no Oriente Médio. Devemos tal progresso ao melhoramento dos neurônios que futuramente nos pode levar a uma espiritualidade puramente humana, afastando-nos cada vez mais do instinto animalesco do belicismo e egoísmo, como também do caldo cultural que nos inclina para a discriminação étnica. Para isso, não precisamos de ídolos religiosos, nem de líderes políticos. Como disse Bertolt Brecht, “desgraçado o país que necessita de um herói”!

 

 


 

 

Ensaio:     Da Fantasia à Ciência

 

“Somos, concretamente, restos de estrelas animados de consciência”

 (Marcelo Gleiser)

1-Alguns depoimentos sobre religião e arte:

 

Nietzsche: “A ilusão é a essência em que o homem se criou”

Pablo Neruda: “As religiões foram berço de poesia,

e esta se juntou a elas fertilizando os mitos,

colaborando como o incenso no entardecer das basílicas”.

Ferreira Gullar: “A poesia existe porque a vida, por si só, não basta”.

            As afirmações acima nos levam a refletir sobre o fato de que arte e religião têm em comum o recurso à fantasia. A origem das crenças em seres sobrenaturais e das atividades artísticas é pré-histórica, perdendo-se na noite dos tempos, quando primatas começaram a desenvolver um cérebro com neurônios suficientes para sentir e pensar. O homo sapiens, de origem africana e ao redor de 200 mil anos atrás, começou a pergunta-se acerca da realidade que o circundava. Perplexo em face de tempestades, doenças e morte, imaginou a existência de outro mundo, sobrenatural e providente. Foi criando, assim, divindades cosmológicas (sol, terra, céu, mar) ou antropomórficas (seres com atributos humanos), às quais dirigia suas preces, na esperança de obter ajuda e conforto aqui e num além imaginário. A origem das religiões estaria, portanto, no medo e na ignorância das causas dos fenômenos naturais.

            No homem primitivo, o sentimento religioso provocou o nascimento da arte pela necessidade de dar configuração concreta às divindades idealizadas. Acompanhando a evolução humana, o mito foi sendo expresso pela palavra narrada (poesia épica, conto, romance), cantada (lírica) ou representada (teatro), pela imagem fixa (pintura, escultura) ou móvel (cinema, televisão). Mas, se a arte se relaciona com a religião pelo recurso à fantasia (ou à “ilusão”, conforme Nietzsche), ela está mais próxima da ciência pela busca da novidade. A própria denominação do gênero “ficção científica” indica tal interdependência.  O escritor francês J. Verne (“Viagem ao centro da terra”, 1864) é o pioneiro neste tipo de literatura que, além de servir-se dos recursos que a ciência já conseguiu, antecipa as futuras conquistas pela imaginação. Do romance para o cinema o passo é breve. Haja visto o sucesso mundial do personagem Harry Potter!

            A falta de novidade é uma característica que distingue a religião não somente da arte, mas também da filosofia e da ciência.  O dogma imobiliza o conhecimento no tempo e no espaço. Para os crentes, o que Deus teria dito a Moisés três mil anos atrás no monte Sinai é válido ainda hoje e em qualquer lugar. A arte, diferentemente, está em continuo movimento, tentando sempre reinventar a realidade. É a metáfora poética que renova constantemente a linguagem humana, o meio indispensável para o progresso civilizacional. Mais ainda: é a arte a dar sobrevida à própria crença. Se, nas origens, a religião inspira a arte, mais tarde será esta a perpetuar a religião. Isso explica porque as culturas indígenas (pré-colombianas, por exemplo), que não registraram a voz de seus vates por falta de uma língua escrita, acabaram no oblívio.  O que restaria da mitologia grega sem os poemas de Homero e de Virgílio ou da religião cristã sem a poesia de Dante Alighieri, autor da Divina Comédia, onde encontramos condensada toda a doutrina católica sobre Inferno, Purgatório e Paraíso?

 

 

 

2-  O politeísmo greco-romano

A primeira forma de religião, na cultura ocidental, foi a mitologia grega, que está na base da nossa civilização, influenciando literatura, artes e psicologia, de Homero a Freud. Foi a leitura da peça Édipo Rei, de Sófocles,  que deu ao neurologista austríaco o insight para a formulação do complexo materno. Os mitos inventados pelos antigos helenos estão registrados principalmente nos poemas atribuídos a Homero, a Ilíada e a Odisséia, que tratam da guerra dos gregos contra Tróia, rica cidade da costa asiática, acontecida no séc. XII a.C. Juntamente com a poesia épica (a palavra “narrada”), começou a lírica (palavra “cantada”) e o drama (a palavra representada).  O mito de Dionísio (Baco), por exemplo, é expresso pelo épos (narração), ditirambo (hino) e Bacantes, peça dramática de Eurípides. Além da literatura e do teatro, a mitologia está presente nas artes plásticas (pintura, escultura, arquitetura: Acrópoles de Atenas), na música (Orfeu), na dança, na atividade esportiva (Olimpíadas), na prática dos valores individuais e sociais (democracia, ética, cidadania).

Os deuses eram imaginados como representações de vícios e virtudes humanas: o prepotente Zeus (Júpiter), a voluptuosa Afrodite (Vênus), a casta Diana, o guerreiro Marte, o mensageiro Mercúrio etc. Especial importância adquiriu o mito de Apolo (Hélios=Sol), objeto de estudo pelos babilônios (1500): o astro foi utilizado para definir o calendário; egípcios (1350): o sol é identificado com o deus Áton (ou Atum-Rã), primeira forma de monoteísmo; gregos: o filósofo Anaxágoras (500-428) considera o Sol como uma pedra de fogo (início da desmitificação) e o cientista Ptolomeu (90-168)  imaginá-lo como um astro imóvel; renascentistas europeus: Copérnico, Galileu, Newton, que substituem o geocentrismo pelo heliocentrismo;  modernidade: cientistas, por meio de telescópios, sondas e naves espaciais, estudam a estrela a 150 milhões de quilômetros,  que influencia clima e saúde na terra.

As divindades, que habitariam o Olimpo, um espaço imaginário extraterrestre, tinham correspondentes arquetípicos na terra (Helena de Tróia, Ulisses, Aquiles etc.) com que estabeleciam relações de proteção ou de hostilidade: Atena (Minerva) e Hera (Juno) ajudam os gregos, enquanto Afrodite (Vênus) está sempre ao lado dos troianos, pois fora escolhida por Páris como a deusa mais bonita. O narrador da Ilíada é considerado um vate, um poeta inspirado pela divindade, como está explícito na invocação a Calíope, a protetora da poesia épica, já no primeiro verso do poema:

 “Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles...”

O fingimento é evidente: quem narra os fatos é apresentado como se fosse a própria divindade, o poeta sendo apenas um intermediário entre o divino e o humano. E isso para salvar o princípio da verossimilhança: como um ser humano poderia saber o que se passava lá no Olimpo, no meio dos deuses? Qual é a diferença, então, entre o poeta Homero e o profeta Moisés, que se apresentou às tribos judaicas como o enviado de Jeová para impor as Tábuas da Lei? Ele também se dizia enviado de Deus para que seu povo o obedecesse. Portanto, nada, a não a pequenez do nosso cérebro, nos autoriza a considerar a Ilíada como uma escritura “humana” e o Gênesis como uma escritura “sagrada”, a primeira contendo fantasias e, a segunda, verdades inquestionáveis que deveriam nortear nossa conduta de vida.

 

3 - O Judaísmo nacionalista

Deus disse então a Moisés: Dirás isto aos filhos de Israel: “Foi o Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, que me enviou para junto de vós...transferir-vos-ei da opressão do Egito para a terra dos cananeus” (Êxodo, III, 16-17).

Além da Grécia, outra matriz da civilização ocidental é a cultura bíblica. O mítico Abraão é tido como ancestral comum de judeus, cristãos e muçulmanos. O profeta Moisés (séc. XII) é a figura histórica que viveu quase um milênio após o primeiro patriarca. A ele é atribuída a autoria dos primeiros livros (Pentateuco ou Torá) do Antigo Testamento. Mas pergaminhos que contêm textos considerados “sagrados” remontam apenas ao segundo século antes de Cristo. O que houve antes foi a transmissão de uma tradição oral em aramaico ou hebraico. De outro lado, o legislador Moisés não apresenta novidades que permitam supor uma intervenção divina: a passagem do politeísmo para o monoteísmo já foi imposta pelo faraó Akhenaton (séc. XIV a.C.), esposo de Nefertiti e pai de Tutancâmon, ao obrigar os egípcios a adorarem apenas o disco solar com o nome de ÁTON (o astro-rei); os dez mandamentos já se encontravam no Código Hamurábi, o rei da Babilônia, que viveu também vários séculos antes de Moisés.

 A figura do profeta Moisés adquire importância fundamental apenas à luz da formação da nacionalidade hebraica, pois conseguiu juntar as tribos nômades dos judeus, que viviam ao redor do monte Sinai, dando-lhes uma pátria, a terra de Canaã (Palestina) e uma religião, o culto exclusivo a Jeová, o deus do mítico patriarca Abraão. Perguntaria, de relance, por que Deus teria escolhido um homem (Moisés) e um povo (os judeus) como seus protegidos, em detrimento de povos vizinhos (egípcios, babilônios, persas, árabes) ou dispersos nos vários continentes. Ele não deveria ser o Pai de todos os seres humanos, sem discriminação alguma? Evidentemente, não foi “Deus que disse” a Moisés. Ele, como outros profetas, de ontem e de hoje, acreditam ter ouvidos “vozesou inventam “aparições divinas para fins variados.

 

4- Cristo: a humanização do divino

             “Cristo não pertence ao cristianismo, mas ao mundo inteiro”

(Mahatma Gandhi)

            A novidade se deu com Jesus Cristo que apregoou uma ordem social e moral diferente, tentando substituir a guerra pela paz, o ódio pelo amor. Ele não fundou igreja alguma, apenas ensinou como viver em sociedade, superando o egoísmo próprio dos animais. Infelizmente, a massa popular não estava preparada para absorver sua mensagem. Por isso, primeiro, o colocou na cruz e, bem mais tarde, fez dele um Deus, atribuindo-lhe milagres. A genialidade de Jesus Nazareno está em prenunciar o que o filósofo alemão Emanuel Kant, uns 18 séculos depois, irá afirmar como “imperativo categórico”: a obrigação do amor ao próximo, do respeito mútuo entre todos os membros de uma sociedade, não causando a outra pessoa o mal que não queremos para nós. Tal princípio moral não depende de nenhuma religião, pois é conditio sine qua non para vivermos numa comunidade que se quer civilizada. O egoísmo individual ou de grupos e a prepotência do mais forte são heranças animalescas do homem primitivo, ainda escravo da lei da selva.

 

5- Maomé: retorno ao passado

“Se um homem for surpreendido a dormir com uma mulher casada, ambos deverão morrer: o homem que teve relações com a mulher e também a mulher. Assim farás desaparecer esse mal de Israel” (Deuteronômio, XXII, 22).

No Corão e nos Hadith islâmicos encontramos trechos semelhantes que condenam os adúlteros a chicotadas e apedrejamento. Os dois livros são considerados sagrados, pois escritos por discípulos de Maomé (570? - 632), tido como o terceiro e último grande profeta (depois de Moisés e Jesus Cristo). Maomé é, sob alguns aspectos, o equivalente árabe do judeu Moisés: heróis de guerra e formadores de nacionalidades peculiares, que tentam se sobrepor a outras, inclusive pela violência, em nome de uma presumida revelação divina. O ódio entre raças ou religiões não faz sentido. Como disse Martin Luther King, a lei “olho por olho” acaba deixando todos cegos!

O grande mérito do fundador do Islamismo foi ter dado unidade nacional e religiosa às tribos árabes, estendendo o império muçulmano por várias regiões da Ásia, da África e da Europa. Muitos templos cristãos foram transformados em mesquitas islâmicas, o maometanismo absorvendo a antiga cultura bizantina e deixando importantes contribuições na filosofia e na medicina. Mas se, do ponto de vista cultural, o Islamismo marcou um avanço inquestionável, comparado com a primeira fase da Idade Média cristã, sua religião acusa um retrocesso. A Sharia (o conjunto das leis de Sunitas e Xiitas), como a Torá hebraica, não distingue a finalidade religiosa (salvar a alma) da aspiração laica (buscar a felicidade). Invadindo a esfera da vida privada e impondo normas de comportamento não sempre condizentes com o bem-estar do indivíduo, o Islamismo, como a maioria das religiões, acaba criando problemas de consciência (sentimento de culpa) e conflitos sociais (ódio entre diferentes etnias).

 

6- Renascimento europeu: apogeu da cultura humanista

            Renascimento significa “nascer de novo”, pois o homem europeu tomou consciência de que esteve morto ao longo de muitos séculos de domínio da Igreja Católica, durante a Idade chamada “média” por estar entre a civilização greco-romana e a era moderna. A paralisia cultural é atestada pela constatação espantosa de que não existiu nenhum homem ilustre, em qualquer campo da atividade humana (filosofia, arte, ciência, esporte), que tivesse vivido entre o século V (quando se deu a queda do Império Romano) e o XII, início das Cruzadas. Trata-se de setecentos anos de obscurantismo absoluto, ao longo de que a Igreja de Roma tentou apagar os vestígios da esplendida civilização da Grécia e da Roma antiga, considerada pagã e pecaminosa, projetando a felicidade do homem num hipotético mundo ultraterreno.

            O primeiro Renascimento aconteceu depois do Ano Mil. Conforme uma crença medieval, o universo acabaria ao término do primeiro milênio da era cristã. Porque a prevista catástrofe cósmica não aconteceu, a Europa foi invadida por um novo sopro de vitalidade. Historicamente, o que provocou a primeira Renascença foram as Cruzadas. Os exércitos cristãos, em várias expedições, romperam o bloqueio do mar Mediterrâneo, dominado pelos árabes, na tentativa de libertar a cidade sagrada de Jerusalém do domínio muçulmano. O melhor resultado das Cruzadas foi o reatamento das relações comerciais e culturais de povos da Europa com o Oriente Médio, acabando, assim, com o isolacionismo do sistema feudal. Cidades da costa mediterrânea entraram em contato com a florescente civilização bizantina e islâmica. O intercâmbio comercial levou ao enriquecimento de cidades marítimas italianas (Veneza, Nápoles, Siena, Genova) e ao início de uma imponente atividade artística, especialmente em Florença e Roma. A obra medieval que melhor exprime a síntese da religião e da arte medieval é a Divina Comédia de Dante Alighieri.

            O segundo Renascimento europeu ocorreu ao longo dos séculos XV e XVI como conseqüência de várias causas interligadas: as grandes Navegações levaram ao descobrimento de novas terras; a troca de mercadorias deslocou o eixo do Comércio do Mediterrâneo para o Atlântico; a revolução comercial provocou a revolução da Indústria; a necessidade de novas maquinarias estimulou o avanço científico; a amplidão dos horizontes geográficos colocou em crise os antigos conceitos cosmológicos; as descobertas científicas de Copérnico, Newton, Galileu, Leonardo da Vinci lançaram suspeitas sobre leis cósmicas até então consideradas verdadeiras e incontestáveis, contidas em livros tidos como sagrados.

 

7-  Pensamento reflexivo

“O sábio duvida, o tolo acredita”

            Na verdade, é a dúvida e o questionamento de valores a diferenciar a Renascença da Idade Média. Enquanto o gênio poético medieval Dante Alighieri (1265-1321) acredita piamente nos dogmas da fé católica, o maior dramaturgo renascentista, William Shakespeare (1564-1616), põe na boca do personagem Hamlet o monólogo que inicia com o famoso verso To be or not to be (“Ser ou não ser”)! Algumas décadas depois, o filósofo francês René Descartes (1596-1650) formula a “dúvida metódica”, sintetizada no famoso Cogito, ergo sum: “penso, por isso existo”, negando tudo aquilo que não fosse evidente à luz da razão. Começa a nascer, assim, na história da humanidade, o verdadeiro homo sapiens, o ser humano que pensa e reflete com sua própria cabeça, em contraste com quem apenas acredita, o “crente”, que se deixa conduzir por ídolos religiosos ou líderes políticos, como ovelha que precisa de um “pastor”.

Mas, será que, antes da Renascença e de Descartes, não houve gente que pensasse? Houve, sim, mas os poucos filósofos acabaram pregando no deserto de uma massa popular 99% analfabeta. Infelizmente, a evolução humana, não somente a física, mas principalmente a mental, é lenta demais. Como bem afirmou o sábio francês Blaise Pascal (1623-1662), “nada é mais difícil do que pensar”.  Na cultura ocidental, um dos primeiros filósofos foi Protágoras de Abdera (486?-404), que escreveu duas obras, Sobre a verdade e Sobre os deuses, de que restam apenas fragmentos. O mais famoso começa com a afirmação de que “o homem é a medida de todas as coisas”, pondo em dúvida a existência de verdades absolutas e de seres sobrenaturais. Começava, assim, o que chamamos de “humanismo”, a atitude mental que busca em nós mesmo a solução de problemas existenciais. Acusado de heresia e condenado à morte, Protágoras conseguiu fugir de Atenas.

Não teve a mesma sorte seu contemporâneo e mais famoso pensador grego, Sócrates (470-399) que, acusado do mesmo crime de corruptor da juventude por questionar a religião e a moral da época, preferiu tomar a cicuta a renunciar ao que considerava verdadeiro na intimidade da sua consciência. Famosa se tornou sua afirmação: “Sei apenas de não saber nada”. Seu método de ensino tinha dois momentos: a “ironia”, que consistia em fazer perguntas ao interlocutor, suscitando dúvidas sobre a coerência de seu raciocínio; e a “maiêutica” (= parteira, a profissão da mãe de Sócrates), pela qual o diálogo entre mestre e discípulo ajudava a fazer vir à luz a verdade que estava no espírito, depurando a alma da falsidade da opinião comum. Seu discípulo Platão (428-348) reflete sobre as profundas falhas do sistema democrático de Atenas, que condenara à morte “o mais sábio e o mais justo de todos os homens”. Já Aristóteles (384 - 322), contestando a teoria das idéias do mestre Platão, apresenta a tese do “ilemorfismo”, a conjunção inseparável do espírito e da matéria, conforme veremos mais em baixo.

Outro grande sábio do mundo grego foi Epicuro (341-270), o primeiro pensador ocidental a negar claramente a possibilidade da existência de um Deus Onipotente e Misericordioso, ao mesmo tempo. Seu raciocínio se tornou famoso e inquietou muito Santo Agostinho, também ele preocupado em conciliar a bondade divina com a existência do mal e da dor na terra:

“Ou Deus pode e não quer evitar o mal: então não é bom;

ou Ele quer mas não pode: então não é todo-poderoso.

Em cada qual das duas hipóteses, Deus não existe”.

Seu pensamento filosófico deu origem à doutrina moral chamada de “Epicurismo”, que coloca a felicidade humana na busca do prazer justo e moderado:

“É impossível viver com prazer, sem viver bem, sábia e justamente;

e é impossível viver bem, sábia e justamente, sem viver com prazer”.

As obras de Epicuro se perderam: conhecemos seu pensamento através de citações de seus discípulos. O poeta latino Horácio (65-08) faz referência aos ensinamentos do mestre grego por expressões que se tornaram memoráveis: carpe diem (aproveite o momento que passa), in medio stat virtus (a virtude está no meio termo), odi profanum vulgus (odeio a vulgaridade). Outro poeta epicurista romano, Lucrécio (98-55), na sua obra De rerum natura  (Sobre a natureza das coisas), ao descrever o mito de Ifigênia, levada ao altar para ser sacrificada à deusa Diana pelo pai Agamenão (semelhança incrível com o mito bíblico do sacrifício de Isaac pelo pai Abraão), exclama:

“Tantum religio potuit suadere malorum!”

(Até que ponto a religião pôde induzir ao crime!)

E não foi só então: ainda agora se continua matando em nome de deuses, cada religião, considerando-se possuidora da verdade absoluta, se acha no direito de impor seus dogmas, inclusive pela violência. Infelizmente, apesar do enorme progresso tecnológico, a mente humana ainda não saiu do estágio da infantilidade, esperando a salvação por parte de imaginários entes sobrenaturais. Tal dependência está fundamentada na necessidade popular de “acreditar em alguma coisa” que nos venha socorrer. Mas os judeus estão rezando há 3.000 anos, os cristãos 2.000, os muçulmanos 1.400, os protestantes 500, aproximadamente, e suas rezas ainda não foram atendidas, pois o sofrimento físico e psíquico não diminuiu neste mundo. Seria mais proveitoso aceitar nossa condição humana de seres nascidos para a morte e dar sentido à vida pela dedicação ao trabalho, arte, ciência, esporte, amizade, amor, sexo e a outras atividades prazerosas e úteis ao convívio social, sem sentimento de culpa.

 

8- Ciência e espiritualidade humana

            “Quem faz milagres é a ciência, melhorando nosso nível de vida”.

 A ciência, diferentemente da religião que fica parada no tempo e no espaço, está em contínua evolução, corrigindo os achados antigos em face de novas descobertas. Assim, o renascentista Copérnico veio contestar o movimento terrestre imaginado pelo egípcio Ptolomeu, substituindo o geocentrismo pelo heliocentrismo, como o moderno Einstein superou a concepção linear do grego Euclides.

Os princípios do evolucionismo, a física quântica, a teoria da relatividade, a neurociência, o mapeamento genético, a tecnologia eletrônica vieram revolucionar a concepção do Universo, quer no tocante o macrocosmo, quer em relação ao microcosmo. O cientista Marcelo Gleiser utiliza a imagem da “praia vista à distância” para explicar a realidade quântica, regida pelo Princípio da Incerteza (PI): de longe, a praia parece contínua e compacta, mas, de perto, vemos a íntima granularidade da areia. Cada grão é composto de milhões de átomos, cada um tendo núcleos subatômicos, cuja atividade só pode ser detectada por maquinarias desintegradoras de partículas.

            Especialistas de várias áreas do conhecimento continuam se debruçando sobre o estudo das três origens: do Universo (a matéria cósmica, o mundo mineral), da Vida

(matéria orgânica, vegetal e animal) e da Mente (atividade cerebral e pensamento, próprio do ser humano). Os estudiosos, que seguem a linha evolucionista, sustentam a tese de que essas origens são “subseqüentes” e não independentes: ao longo de milhões de anos, teria havido, não criações novas, mas apenas “passagens” do inorgânico para o orgânico, do mundo cósmico para a vida vegetal, animal e humana. Charles Robert Darwin, ao publicar A origem das espécies (1859), provocou a maior revolução cultural de todos os tempos, substituindo a crença bíblica na Criação do mundo, pela verdade científica da Evolução: todas as espécies vivas, de animais e vegetais, não foram criadas separadamente, mas derivam uma da outra, com base na lei da seleção natural, visando à sobrevivência.

            O princípio do Evolucionismo vem sendo aplicado não só ao estudo da biologia e da genética, mas a quase todos os campos da investigação científica. Evolução é vida, movimento, e não há nada de vivo parado no tempo ou no espaço. Aliás, pela mecânica quântica, essas duas categorias não existem separadamente. As menores unidades formadoras do átomo são “cordas vibratórias”; o que nos leva a pensar na existência de um moto perpétuo, infinito, eterno. Não existiria espaço vazio, mas apenas “vácuo”, habitado pela matéria /energia “escura”, assim dita porque ainda não identificada pela inteligência humana.

Também não existiriam Início e Fim do Universo.  O químico francês Lavoisier (1743-1794), dando comprovação científica ao ditado latino nihil ex nihilo (nada vem do nada), chegou a afirmar que “nada se cria, nada se destrói, tudo se transforma”. Um cigarro fumado não se aniquila, mas se converte em cinzas no chão e moléculas no pulmão e no ar. Portanto, não haveria Fim do Mundo (Apocalipse ou Juízo Final) como acreditam os religiosos, simplesmente porque não teve Começo (o Gênese bíblico). Também, com relação à Ciência, não existe prova de que o Big Bang teria sido a explosão “inicial”, que deu origem à matéria, há aproximadamente 13 bilhões de anos. Provavelmente, foi apenas um choque astral imenso, como tantos outros que aconteceram depois. Os estudiosos falam de cinco enormes cataclismos, os Big Five, que exterminaram três quartos das espécies da terra, provocados por explosões vulcânicas, aquecimento ou esfriamento global, queda de meteoritos. Considera-se que foi a quinta extinção, acontecida há 65 milhões de anos, que acabou com a espécie dos dinossauros.

Que a matéria inorgânica se transformasse em “vida” (por isso, podemos nos considerar descendentes da “poeira de estrelas”), isso não é mais mistério. As substâncias orgânicas (aminoácidos e uréia), necessárias à origem da vida, podem ser criadas em laboratório, misturando gases (metano, amônia e hidrogênio) por um processo de esquentação e evaporação, seguido do esfriamento. A vida não deixa de ser um conjunto de reações químicas com a capacidade de reprodução. Após o início da vida vegetal, os primeiros animais talvez viessem do mar, ocupando todo tipo de nicho ecológico que encontravam entre as águas e a terra firme.

Na longa corrida evolutiva, com início talvez 400 milhões de anos atrás, seres vivos, intermediários entre anfíbios e peixes, parecidos com lagartixas ou crocodilos, ao ocuparem a superfície terrestre, se tornaram tetrápodes, andando apenas com quatro patas. Os mamíferos apareceram uns 200 milhões de anos depois. Os primeiros hominídeos (mamíferos arquétipos do homem) teriam nascidos na África há cinco milhões de anos, aproximadamente. Foi longa a caminhada que marcou a passagem do primata, quando ainda andava de quatro, até conseguir chegar à primeira forma humana, o homo erectus.

            Mais longo ainda foi o percurso até chegar ao homo sapiens, um ser inteligente. Estima-se que sua definição se deu uns 200 mil anos atrás, no sudoeste da África. O que distingue nossa espécie do animal selvagem é a curiosidade, o querer saber. Tal faculdade é tida como pecado de orgulho ou desobediência pela maioria das religiões. No Gênesis lemos que Adão e Eva, driblando a ordem divina, comeram a maçã, fruto da árvore do conhecimento do Bem e do Mal e por isso perderam a imunidade do sofrimento e da morte. Olhem a contradição: o homem teria sido criado como ser inteligente, mas condenado à ignorância!

A meu ver, o que torna um ser pensante é, essencialmente, a evolução do cérebro. São os neurônios, as células cerebrais, que desenvolvem o raciocínio, a sensibilidade, os princípios cívicos e éticos. Qualquer órgão pode ser transplantado, com exceção do cérebro, sob pena de criarmos um alter ego”, uma outra personalidade. Tanto é verdade que pessoas afetadas por um dano cerebral, ou submetidas à intervenção cirúrgica para extração de tumor na base neural, acabam apresentando alteração da personalidade, de acordo com a localização da parte do lóbulo lesionado.  No filme Ilha do medo, o diretor Martin Scorsese explora o tema da lavagem cerebral: personagens são manipulados por cirurgiões inescrupulosos para mudar sua identidade mediante cortes na base craniana.

A partir dessa constatação científica, é lícito deduzir que não existe espírito sem matéria cerebral e que a alma de um ser humano não é colocada no útero na hora da concepção, bela e pronta, vindo de fora, mas vai se formando aos poucos, pela evolução dos neurônios, ao longo da vida toda, estando sujeita a contínuas modificações na dependência de fatores genéticos, biológicos, culturais, ambientais, sem excluir o ato do querer do individuo. A moderna neurociência estaria confirmando, então, a tese do “ilemorfismo” (ilê=matéria + morfé=forma), a conjunção indissolúvel entre espírito e matéria, proposta pelo antigo filósofo Aristóteles.

Mas, se a alma morre com o corpo, o que nos resta? Sábios antigos diziam que a eternidade reside nos liberi (filhos, a continuação genética) aut libri (livros, a obra de arte). O que nos torna eternos são os filhos ou discípulos que educamos, a árvore que plantamos, o quadro que pintamos, o poema que escrevemos. Se a grande maioria do povo deixasse de colocar a esperança de salvação em ídolos religiosos ou líderes políticos, nosso nível civilizacional aumentaria espantosamente. Como bem relevou o dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), “desgraçado o país que necessita de um herói!”. Quem precisa de um Pastor ou de um Chefão são ovelhas ou indígenas canibais!

Por incrível que pareça, o maior inimigo do avanço civilizacional é o próprio caldo cultural em que somos educados. De um lado, o legado genético nos reporta à ancestral animalidade, induzindo-nos a seguir os instintos da violência e do egoísmo, cada qual tentando levar vantagem sobre outro; de outro lado, a tradição familiar, com base em crenças religiosas, nos inculca idéia de pecado, sentimento de culpa, segregação étnica. Homens-bomba ou matança de crianças nas escolas continuam demonstrando que o consolo oferecido pelo fanatismo religioso ou moral (a recompensa num mundo sobrenatural), além de ilusório, é prejudicial à vida em sociedade.

 A afirmação “Pensar é Preciso” (título de um livro meu, parodiando “navegar é preciso” de Fernando Pessoa) pode ser vista como a chave para responder às nossas inquietações, pois o conhecimento científico, como a atividade artística, não deixa de ser uma busca de espiritualidade.  O homem é um ser especial, pois só ele pode refletir sobre a vida. Se deixar de fazê-lo, se iguala aos outros animais que se limitam apenas à satisfação do instinto da conservação própria (pela comida) e da espécie (pela cópula). Se a gente usasse o raciocínio lógico ou o bom senso poderia resolver pungentes problemas existenciais, sem depender da vontade de um líder religioso ou político. Faz sentido colocar filhos no mundo sem condições de educá-los ou reeleger políticos suspeitos de corrupção?

Quem sabe, a recente simbiose do homem com a máquina de silício possa estimular nosso intelecto ao ponto de provocar uma nova revolução, modificando substancialmente nossa maneira de viverem sociedade. Internet, sites de busca e de relacionamento, wikipédia, disponibilizando cultura gratuita, além de tirar os homens do isolamento e da ignorância, propiciam colaboração internacional. No Oriente Médio, a derrubada de regimes ditatoriais e o questionamento de valores fundamentalistas só estão sendo possíveis graças à inteligência humana mundialmente conectada.

Esperamos estar enterrando a era do autoritarismo político e religioso e entrando num novo humanismo que vise compreensão e ajuda entre nações, sob a égide do conhecimento da verdade e do sentimento de justiça. Um homem, como um povo, não pode ser feliz, se o vizinho estiver na miséria. Para conseguirmos tal nível de espiritualidade precisamos desenvolver nossa inteligência ao ponto de entendermos que o bem público é mais importante, pois se reverte também em bem particular, em médio prazo. Talvez a humanidade leve mais alguns milênios, mas pode chegar lá: povos de etnia escandinava e anglo-saxônica já iniciaram a longa caminhada rumo à construção de uma cidadania de verdade.

Nas últimas décadas, com o avanço da medicina (vacinas, antibióticos, transplantes), a expectativa de vida dobrou. Modernas máquinas de mapeamento genético estão próximas de identificar doenças antes que elas se manifestem. A nanocirurgia a laser está avançando a largos passos. Os circuitos integrados (chips) revolucionaram o mundo da eletrônica. Devemos tal progresso exclusivamente ao desenvolvimento do nosso cérebro, que futuramente nos pode levar a uma espiritualidade puramente humana, afastando-nos cada vez mais do instinto animalesco do belicismo e do egoísmo individual ou de grupos. Dificilmente o ser humano chegará a sublimar completamente o instinto bestial, mas poderá construir um futuro mais feliz!

 

Bibliografia sugerida:

Arendt, Hannah: As origens do capitalismo. Ed. Companhia das Letras

Armstrong, Karen: A bíblia (uma biografia). Ed. Zahar

Bobbio, Norberto: O filósofo e a política. Ed. Contraponto

Comte-Sponville, André: O espírito do ateísmo. Ed. Martins Fontes

Damásio, António R.: O erro de Descartes. Ed. Companhia das Letras

Dawkins, Richard: Deus, um delírio. Ed. Companhia das Letras

D’ Onofrio, Salvatore: Dicionário de cultura básica. Ed. Publit

            “          “          Pensar é Preciso. Ed. Editorama

Literatura Ocidental. Ed. Ática

Forma e sentido do texto literário. Ed. Ática

Ferry, Luc: Aprender a viver. Ed. Objetiva

Giannetti, Eduardo: A ilusão da alma. Ed. Companhia das Letras

Gleiser, Marcelo: A criação imperfeita. Ed. Record

Hitchens, Christopher: Deus não é grande. Ed. Ediouro

Onfray, Michel: Tratado de ateologia. Ed. Rocco